Sumário Executivo Investindo nas Pessoas João vive nas ruas desde quando consegue recordar. Du- rante toda sua infância, nunca foi à escola, nunca teve mo- radia decente ou alguém para chamar de família: “A rua é a minha sala de aula, meu abrigo e meu conforto.” A gene- rosidade de estranhos alivia a fome, mata a sede e afasta a solidão, mas somente exporadicamente. Na maioria das vezes, João tem que recorrer ao seu talento para poder so- breviver. Munido de materiais improvisados em seu ponto estratégico usual, sua obra tem que ficar perfeita: o retrato precisa estar pronto exatamente quando o modelo distraí- do estiver se aproximando; alguns segundos a mais e tudo estará perdido. Alerta, curioso e resiliente, João nunca dei- xou escapar nenhum detalhe. “Ficou a minha cara!” excla- ma um pedestre ao lado do seu mais novo retrato. “De onde vem todo esse talento?” é a pergunta que João mais ouve. “De uma barriga vazia,” é a sua típica e sugestiva respos- ta. “Imagine se você tivesse a chance de desenvolver todo esse talento, menino…” Não muito longe dali, Bela sai frustrada de sua quarta entre- Quanto talento vista de emprego. O sentimento é desperdiçado é sempre o mesmo: “Eu poderia contribuir tanto!” A primeira da no Brasil? sua família a cursar uma faculdade, a última a deixar a sala Chapter 1 de estudos, Bela foi a aluna mais talentosa da sua turma. Com notas excelentes, referências impecáveis, Bela apren- deu sozinha um novo idioma. “Parece tão fácil para os ou- Measuring Human Capital tros...” Em casa, ela serve de exemplo para seus dois irmãos Measurement as a first step toward action mais novos. Na escola, mostrou para todos os colegas que uma mulher negra pode se tornar uma engenheira. Mas ao procurar emprego, a resposta é sempre a mesma: “Você não tem o perfil que estamos procurando.” Flexível, Bela não se importa de trabalhar até tarde ou viajar se necessá- rio, mas mesmo assim não tem nenhuma oportunidade. Às Relatório de Capital Humano Brasileiro vezes ela se pergunta se deve dar ouvidos aos conselhos que recebe: “talvez isso não seja para você, Bela.” Mas este argumento ela não pode aceitar – “e se todos vocês estive- rem errados?” O Relatório de Capital Humano Brasileiro (RCHB) conta uma história sobre talentos perdidos no Brasil. Discute as ane- dotas materializadas nas vidas de João e Bela analisando as circunstâncias sob as quais crianças são impedidas de alcançar seu pleno potencial. A seguinte pergunta é feita: o 2 que aconteceria com a produtividade do trabalho se o Brasil oferecesse educação e saúde de qualidade a todas as crianças, em todas as partes do país? Como reduzir a lacuna entre as circunstâncias ideais e o que de fato ocorre? O RCHB é parte do Human Capital Project, uma iniciativa global do Banco Mundial que visa alertar os go- vernos sobre a importância de investir nas pessoas. As evidências justificam essa abordagem. Por exem- plo, choques no capital humano decorrentes de políticas de assentamento adotadas há um século ainda têm impactos consideráveis no desenvolvimento atual do Brasil. Analizar as tendências de acumulação de capital humano ajuda a explicar por que a desigualdade de renda tem permanecido em patamares tão elevados ao longo dos anos e sugere também por que em média os brasileiros tendem a permanecer na pobreza por várias gerações.1 O ICH estima a Medir como primeiro passo. A história do talento desperdiçado começa com uma proposta de indicador para monitorar os avan- produtividade da próxima ços na acumulação de capital humano no Brasil: o Índice de Capi- geração de trabalhadores. tal Humano (ICH). O ICH estima a produtividade esperada de uma criança nascida hoje aos 18 anos de idade, em um contexto onde as condições de educação e saúde permanecem inalteradas. Essa proposta traz contribuições funda- mentais para o diálogo sobre políticas públicas. Em primeiro lugar, o ICH é uma medida prospectiva. O índice calcula a produtividade esperada da próxima geração de trabalhadores caso as circunstâncias se mantenham como estão. ICHs mais altos hoje significam maior produtividade do trabalho no futuro. Figura ES.1 O Índice de Capital Humano Em segundo lugar, o ICH é simples: considera apenas os principais aspectos que influenciam na forma- ção de habilidades. Terceiro, o ICH proporciona uma narrativa clara com base no ciclo de vida: ao nascer, as crianças precisam sobreviver; na infância, precisam estar bem nutridas; em idade escolar, devem concluir todos os níveis de ensino e receber aprendizagem adequada; e na idade adulta, precisam de boa saúde. Quarto, o ICH é orientado para resultados. Ele combina taxas de mortalidade e déficit de crescimento infantil, anos esperados de escolaridade (AEE), resultados de aprendizagem harmonizados (RAH)2 e taxas de sobrevivência de adultos em um único indicador para enfatizar resultados ao invés de insumos. Quinto, o ICH tem um objetivo claro. O indicador não se propõe a medir o bem-estar social ou concatenar valores intrínsecos à vida humana; em vez disso, o ICH propõe uma estimativa da produtivi- Relatório de Capital Humano Brasileiro dade futura se as condições atuais persistirem. As estimativas levam a um resultado final simples: o ICH varia de 0 a 1. Um município onde uma criança típica não corre o risco de sofrer de déficit de crescimento ou morrer antes dos cinco anos de idade, 1 Rocha et al., 2017; Souza, 2018; Hanushek, Ludger e Woessmann, 2012; OECD, 2018. 2 Anos esperados de escolaridade (AEE) é o número esperado de anos de escolaridade de uma criança até os 18 anos de vida se as taxas de repetência e evasão permanecerem as mesmas ao longo da educação básica. Os resultados de aprendizagem harmo- nizados (RAH) calculam a média da parcela de alunos com pontuação acima de limiares avançados em matemática e português, usando dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). 3 recebe educação de alta qualidade e se torna Uma criança brasileira nascida um adulto saudável, terá um ICH próximo de 1. Por outro lado, quando o risco de má nutrição em 2019 atinge apenas 60% de ou morte prematura é alto, o acesso à educação todo o seu potencial. é limitado e a qualidade da aprendizagem é bai- xa, o ICH se aproxima de zero. Medir como primeiro passo. A primeira mensagem-chave deste relatório é que um brasileiro nascido em 2019 alcança em média 60 por cento (ICH de 0,60) de seu capital humano potencial aos 18 anos de idade. Quarenta por cento de todo o talento brasileiro premanece retido, invisí- vel para a sociedade. Muitos Brasis. No entanto, a média nacional nos conta apenas uma pequena parcela de toda a história. Um ICH de 60 por cento esconde desigualdades locais e diferenças regionais na acumulação de capital humano. Com isso, a desagregação do ICH em nível municipal revela a segunda mensagem-chave deste relatório: muitos “Brasis” coexistem dentro do Brasil. O mapeamento dos ICHs produz um retrato claro da desigualdade regional no Brasil: as crianças nascidas em municípios do Norte e Nordeste, por exemplo, desenvolvem aproximadamente metade de todo o seu potencial talento – ou 10 pontos percentuais (0,1 ponto do ICH) a menos que uma criança típica do Sudeste.3 Relatório de Capital Humano Brasileiro Figura ES.2 Muitos Brasis 3 Em 2007, os anos esperados de escolaridade foram o principal fator explicativo da variação do ICH, perdendo importância para os resultados de aprendizagem harmonizados nos anos seguintes (2013-2019). 4 Um exemplo dos “muitos Brasis” pode ser observado no Rio Grande do Sul (Região Sul). Neste estado, 250 quilômetros e 0,3 ponto no ICH separam os municípios de Santa Tereza (ICH de 0,767) e Engenho Velho (ICH de 0,472). Relativamente próximos geograficamente, mas distantes em termos de formação de capital humano. No Nordeste, a cidade de Ibirataia na Bahia apresentava um ICH 2019 equivalente ao do Gabão, enquanto Cocal dos Alves (ICH de 0,74), no Piauí, liderava o ranking nacional em 2019 com um ICH comparável ao da Itália. O componente da educação explica dois terços dessa variação nos ICHs municipais, 77,3 por cento apenas no Nordeste. Melhor, porém Desigual. Embora a ideia de “muitos Brasis” capte as disparidades de produtividade fu- tura em um determinado momento, uma outra parte dessa história ainda deve ser contada: a formação de capital humano no Brasil ao longo do tempo. A investigação desse aspecto nos leva à terceira men- sagem-chave do RCHB: se o ICH manter a trajetória observada entre 2007 e 2019, o Brasil levará apro- ximadamente 60 anos para atingir os patamares de capital humano alcançados pelos países desenvol- vidos já em 2019. Não há tempo a perder. Fica a pergunta: o mapa dos “muitos Brasis” representa então uma melhoria ou deterioração do capital humano nos últimos anos? Os dados brasileiros mostram que os avanços têm sido lentos, desequilibrados e desiguais. Três questões a seguir procuram aprofundar este tema mapeando as principais características do crescimento do ICH no Brasil antes da pandemia. As regiões de baixo desempenho estão conseguindo alcan- O Brasil precisaria de 60 anos çar as regiões com ICHs mais altos? De modo geral, não. Os para alcançar o nível atual ganhos têm sido limitados e a desigualdade regional persis- te. Por exemplo, o ICH médio das regiões Norte e Nordeste de capital humano dos países em 2019 é semelhante ao ICH médio das regiões Sul, Sudes- desenvolvidos. te e Centro-Oeste em 2007 - ou seja, uma lacuna regional de 12 anos. Melhor, porém desigual. No nível municipal, a situação melhora. Os municípios que estavam inicialmente atrasados em 2007 tenderam a crescer mais rapidamente. Mais precisamente, um ICH um por cento menor em 2007 se correlaciona a um ganho 0,5 por cento maior no ICH entre 2007 e 2019. O mesmo padrão foi observado nas capitais dos estados. As capitais na parte inferior do ranking do ICH em 2007 tenderam a apresentar ganhos superiores nos 12 anos seguintes em comparação àquelas já habitando o topo. Iniciando atrás mas crescendo mais rápido. Relatório de Capital Humano Brasileiro Figura ES.3 Melhor, porém Desigual 5 Os ganhos de ICH ilustrados na Figura ES.3 estão concentrados geograficamente? O crescimento mais notável do ICH concentrou-se nos municípios do Nordeste, principalmente nos estados de Pernambuco (aumento de 25,6 por cento), Alagoas (aumento de 20,9 por cento) e Ceará (aumento de 20,9 por cento). Poucas áreas do Sul e Sudeste apresentaram crescimentos semelhantes. A região Norte foi a que teve o pior desempenho, e os municípios localizados no Amapá, Roraima e Tocantins destacam-se com os menores ganhos de ICH entre 2007 e 2019. As crianças da Região Norte não estão apenas atrás, elas também acumulam capital humano em um ritmo mais lento. Figura ES.4 A Geografia dos Ganhos de Capital Humano no Brasil Os municípios bem classificados continuam no topo 12 anos depois? Essa última pergunta investiga a mobilidade no ICH municipal. Os dados mostram que pelo menos 40 por cento de todos os 5.570 muni- cípios do Brasil permaneceram no mesmo quintil de ICH entre 2007 e 2019. Além disso, menos de 0,5 por cento dos municípios subiram da base para o topo ou caíram do topo para os quintis inferiores. Uma vez no topo, quase sempre no topo. De todos os municípios, 11,3 por cento (de um máximo de 20 por cento) Relatório de Capital Humano Brasileiro que ocupavam o quintil superior em 2007 também permaneciam no topo em 2019. Da mesma forma, 10,9 por cento dos municípios (de um máximo de 20 por cento) que figuravam no quintil mais baixo em 2007 permaneciam na parte inferior em 2019. Esses resultados indicam que a maior parte da mobilidade do capital humano no Brasil ocorre entre os municípios no meio da distribuição do ICH. 6 Figura ES.5 Uma Vez no Topo, quase Sempre no Topo Muitas Desigualdades. Até agora, a geografia e o tempo traçaram um esboço da face dos “muitos Brasis.” No entanto, compreender as barreiras subjacentes à formação de capital humano no Brasil re- quer uma investigação mais profunda, sob diferentes perspectivas. Deste modo, a próxima etapa do RCHB analisa desigualdades de gênero, de raça e de raça-gênero. Muitas Desigualdades. A trajetória positiva de acumulação de ICH ao longo dos anos na pré-pandemia perde relevância quando as opor- tunidades de prosperidade são distintas entre grupos de pessoas e quando as desigualdades tendem a aumentar com o passar do tempo. A primeira desigualdade examinada é de gênero. Aqui, a mensagem-chave é de que as mulheres acumulam As mulheres chegam ao mercado de mais capital humano que os homens aos 18 anos de trabalho com mais capital humano idade. Em média, o ICH das mulheres é 7 pontos per- centuais superior ao dos homens (0,60 vs. 0,53). Ao do que os homens. passo que a produtividade esperada dos homens aos 18 anos em 2017 era de 54 por cento de todo o seu potencial, o ICH das mulheres já havia atingido 56 por cento dez anos antes (2007). As mulheres estão pelo menos uma década à frente dos homens. Essa não é uma constatação isolada: as mulheres apre- sentam ICHs superiores aos dos homens em praticamente todos os municípios do Brasil. Não apenas melhores, mas melhores em toda parte. Relatório de Capital Humano Brasileiro 7 Figura ES.6 Prosperidade Não-Compartilhada A segunda desigualdade analizada é de raça. Neste ponto, a narrativa se divide em três partes distintas que relatam a prosperidade não-compartilhada em matéria de ICH. A Parte 1 mede as diferenças raciais nos ICHs entre 2007 e 2019. Constatou-se que a produtividade esperada de uma criança Afrodescenden- te nascida em 2019 era de 56 por cento de todo o seu potencial, ou 7 pontos percentuais a menos que uma criança branca (63 por cento), em média. Em 2019, o ICH da população indígena era ainda menor: 52 por cento. A Parte 2 refere-se aos avanços no ICH. A quarta constatação-chave do RCHB é de que o Índice de Ca- pital Humano das pessoas brancas aumentou em um ritmo mais acelerado do que qualquer outro grupo racial no Brasil. Prosperidade Não-Compartilhada. O aumento médio do ICH das pessoas brancas entre 2007 e 2019 foi de 14,6 por cento. Já os ganhos entre Afrodescendentes e indígenas, por outro lado, fo- ram bem menos promissores. O ICH entre Afrodescendentes aumentou 10,2 por cento e o de indígenas permaneceu praticamente inalterado, com uma taxa de crescimento de apenas 0,97 por cento no mesmo período. Enquanto as pessoas brancas prosperam, negros e indígenas ficam cada vez mais para trás. Diferenças no nível e divergências na taxa de crescimento con- duzem a narrativa à Parte 3: o aumento geral da desigualdade A desigualdade de ICH entre racial no ICH. A diferença de ICH entre pessoas brancas e ne- pessoas brancas e negras gras, que era de 0,04 ponto em 2007, quase dobrou de tamanho em 12 anos. Lacunas, que já eram grandes, estão se amplian- dobrou entre 2007 e 2019. do cada vez mais. Esta, no entanto, não é a constatação mais crítica. A diferença de ICH entre pessoas brancas e indígenas quase triplicou no mesmo período, representando um aumento de 0,06 ponto de Relatório de Capital Humano Brasileiro ICH por ano. A prosperidade não-compartilhada deve se transformar em uma narrativa sobre inclusão bem-sucedida. Talento ao Trabalho. A história do capital humano no Brasil inicia uma nova fase quando encontra o mercado de trabalho. Esta etapa é onde ele é utilizado, colocado em ação, absorvido. O Índice de Capital Humano Utilizado (ICHU) é um indicador ajustado que pondera o ICH pelas taxas de emprego nos mer- cados de trabalho formal e informal. O objetivo é observar quanto capital humano é, de fato, utilizado no mercado de trabalho. Talento ao Trabalho. Considerando estes aspectos, o ICHU no Brasil foi estimado em 38 por cento em 2019. Em outras palavras: o Brasil perde 22 pontos percentuais da produtividade alcançada quando o capital humano chega ao mercado de trabalho. 8 Figura ES.7 (Nem Todo o) Talento no Trabalho O mercado de trabalho aprofunda as desigualdades observa- Considerando-se as das no ICH. Disparidades geográficas se ampliam, muitos Brasis se intensificam. Nas regiões Norte e Nordeste, dois terços de todo taxas de emprego, o potencial acumulado é inutilizado após o ICH ser ponderado pe- os brasileiros atingem las taxas de emprego. Desigualdade de gênero se alastra, mui- tas desigualdades se amplificam. A quinta constatação-chave do apenas 38% de seu RCHB diz respeito às diferenças de gênero: a vantagem de sete capital humano potencial. pontos das mulheres no ICH se transforma em uma vantagem de oito pontos para os homens no ICHU. O mercado de trabalho reverte a vantagem das mulheres sobre os homens na formação e utilização de capital humano no Brasil. Neste contexto, as mulheres Afro- descendentes são penalizadas duas vezes: uma devido ao gênero e outra devido a raça. As mulheres Afrodescendentes pontuam 15,7 pontos percentuais abaixo dos homens brancos no ICHU. O mercado de trabalho gera um grande impacto negativo na utilização do capital humano, especialmente para as mulheres Afrodescendentes. “Hoje, 26 de fevereiro de 2020, o Brasil confirma seu primeiro caso de COVID-19…” João esgueirou-se na loja de TVs para ouvir mais informações sobre o novo vírus que todos estavam comentando. “Um ví- rus desconhecido chegou no Brasil…” Entre inquietas reflexões, compreendeu a fatídica notícia apenas quando os efeitos do virus se tornaram visíveis: “não tem ninguém nas ruas,” concluiu consigo mesmo. Mas foi somente quando viu seu local de retratos completamente deserto que João realmente sentiu, pela primeira vez em sua vida, toda a esperança se desfazer. “Ao menos agora não estou sozinho.” João conheceu Raoni sentado em um semáforo abraçando uma placa que dizia “Fome.” Desde então, João Relatório de Capital Humano Brasileiro abraça a sua: “Eu também.” Inseguro, desmotivado e desesperançoso, Raoni quase não fala. João sabe apenas que a mãe e o irmão mais velho de Raoni saíram de casa tossindo e nunca mais voltaram. “Eu me sinto invisível, como o vírus”, Raoni disse certa vez. Sempre juntos, os dois elaboraram um plano perfei- to para resolver todos os seus problemas: quando o semáforo fica vermelho, João exibe sua obra mais impactante “Use-a!”, grifada em vermelho, enquanto Raoni distribui máscaras para todos os motoristas, gratuitamente. Quando as escolas fecharam, Bela tomou uma decisão irredutível: ela não iria deixar a pandemia inter- romper a educação de seus irmãos mais novos. “Estudar é a única opção que eles têm para uma vida 9 melhor”, pensou ela. Bela é uma irmã dedicada: usou todos os materiais didáticos que encontrou, pre- parou aulas por conta própria e buscou exercícios complementares. Determinada, Bela também criou novos brinquedos, doou seu próprio (e único) telefone para as aulas online e sempre procurou formas inovadoras de engajar seus irmãos com os estudos. “Mas as escolas estão fechadas há tanto tempo…” pensou antes de pegar no sono. Um de seus irmãos não quer mais voltar para a escola e o outro está desinteressado, nunca toma a iniciativa de abrir seus livros. Mês passado, ele completou 10 anos e ainda não consegue ler um simples parágrafo adaptado a sua idade sem a ajuda da irmã. “Se nada for feito, essa pandemia terá consequências duradouras nas vidas dos meninos.” Uma História Interrompida. A história da acumulação de capital humano no Brasil se interrompe abruptamente em 2020. A atual Se nada for feito, pandemia de COVID-19 teve impactos devastadores em todas as a pandemia terá etapas da formação de habilidades. As perspectivas futuras são as mais alarmantes. Em termos de saúde infantil, por exemplo, mais impactos de longo 3,5 em cada 10.000 crianças não sobreviveram até os cinco anos prazo na acumulação de idade em 2021 em comparação a 2019 no Sudeste do Brasil. As taxas de sobrevivência infantil no Nordeste estão estagnadas, de capital humano. sendo que, antes da pandemia, a Região era a que mais crescia. Além disso, cerca de 80.000 crianças podem sofrer déficit de crescimento no Brasil devido à pandemia. Em termos de ensino, as escolas ficaram fechadas por 78 semanas, um dos fechamentos mais longos do mundo. Consequentemente, a parcela de crianças que não sabem ler e escrever saltou 15 pontos percentuais entre 2019 e 2021. Estima-se que quase um milhão de crianças não desenvolveram as competências básicas de alfabetização no Brasil. O desempenho em avaliações estaduais também caíu. No estado de São Paulo, as notas dos alunos da quinta série em português e matemática em 2021 foram equivalentes às notas de 10 e 14 anos atrás, respectivamente. O abandono escolar é outra grande preo- cupação, com um aumento estimado em 365 por cento (Lichand, 2020). Impactos significativos em toda uma geração. A Década Perdida. Em dois anos, a pandemia de COVID-19 reverteu o equivalente a uma década de avanços do ICH no Brasil. Segundo simulações, o índice de capital humano brasileiro caiu de 60 por cento para 54 por cento entre 2019 e 2021. Ou seja: o nível de capital humano equivalente a 2009. A Década Perdida. Os dois fatores que mais contribuíram para esse revés foram: (i) a educação, com 50 por cento da redução ligada aos anos esperados de escolaridade; e (ii) a saúde dos adultos, quando 30 por cento se deve à queda nas taxas de sobrevivência dos adultos. Naturalmente, esses impactos variam entre regiões. As piores quedas foram estimadas em Roraima, Goiás, São Paulo e Pernambuco, onde o ICH diminuiu 11 por cento; em 13 Unidades da Federação (de um total de 27), o ICH regrediu aos patamares de 2007. Os choques nas taxas de emprego impostos pela pandemia somente agravaram esta situação. O ICHU nacio- nal recuou de 0,38 em 2019 para 0,32 em 2021, uma queda de mais de 17 por cento. Esses efeitos foram ainda mais intensos entre os Afrodescendentes e as mulheres. Muitas desigualdades, muitas pandemias. O caminho para a recuperação será longo. Consideran- do-se a taxa de crescimento antes da pandemia, o ICH Considerando-se a taxa levará de 10 a 13 anos para retornar ao patamar de 2019 de crescimento antes da no Brasil. Ou seja, o Brasil chegaria novamente ao ICH de 2019 somente em 2035. Agora, mais do que nunca, as pandemia, o ICH levaria de ações não podem esperar. No curto prazo, as políticas 10 a 13 anos para retornar ao atuais de capital humano devem ser revisitadas, adap- tadas e fortalecidas. O Sistema Único de Saúde (SUS), patamar de 2019 no Brasil. por exemplo, deve proteger crianças e adolescentes das consequências sanitárias e socioemocionais da pandemia. Como desigualdades preexistentes tendem a se agravar, o programa brasileiro de transfe- Relatório de Capital Humano Brasileiro rência condicionada de renda, conhecido como um dos mais bem-sucedidos do mundo, deve ser forta- lecido para apoiar grupos de pessoas mais afetados pela pandemia de COVID-19.4 As recentes reformas nacionais5 de flexibilização do currículo e a promoção de um financiamento mais equitativo na educação6 também devem ser mantidas e reforçadas. Políticas de sucesso são uma alavanca. 4 O RCHB mostra que os programas de transferência condicionada de renda podem ter um papel importante na melhoria dos anos esperados de escolaridade e nas taxas de crescimento saudável. 5 Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) 6 Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e Novo Ensino Médio. 10 Figura ES.8 A Década Perdida Visto que os impactos da COVID-19 na formação de capital humano no Brasil se materializaram, em gran- de parte, na educação, a recuperação e aceleração do aprendizado devem ser prioridades nos próximos anos. Em primeiro lugar - e acima de tudo - todos os alunos devem voltar à escola. Portanto, o Brasil deve utilizar a riqueza dos dados administrativos à disposição para: (i) monitorar os alunos que desistiram dos estudos durante a pandemia; (ii) oferecer bolsas de estudo para atrair os alunos de volta à escola; e (iii) ampliar os programas de busca ativa para reconduzir os alunos à escola. Já que crianças vulneráveis têm maior probabilidade de abandonar/evadir a escola novamente, as escolas podem implementar sis- temas de alerta preventivo para identificar alunos de alto risco e tomar medidas preventivas enquanto estes alunos ainda estão dentro da escola. Uma vez de volta à escola, os alunos precisam, efetivamente, (re)aprender. A recuperação e aceleração do aprendizado devem A recuperação ser a prioridade número 1. Segundo as evidências, tutorias persona- e aceleração do lizadas e plataformas adaptativas de aprendizagem são estratégias que tendem a produzir recuperação sólida já no curto prazo. O legado aprendizado devem da pandemia de COVID-19, no entanto, inclui mais um elemento: a ser prioridade nos saúde mental dos alunos e professores. Alunos desmotivados não costumam aprender bem ou ficar na escola por muito tempo. Por próximos anos. isso, estratégias socioemocionais devem ser articuladas no nível da Relatório de Capital Humano Brasileiro rede escolar, pois produzem benefícios transversais para os alunos, famílias e professores. Por fim, for- talecer a aprendizagem híbrida, ampliar a conectividade à Internet, fornecer dispositivos computacionais para alunos vulneráveis e aprimorar as competências digitais são ações que devem figurar na mesma lista de prioridades. 11 Tabela ES.1 Áreas de Atenção Especial Busca ativa por alunos: Programas de tutoria Creches: Busca ativa por alunos ausentes, personalizada: Ampliação e Recuperação infrequentes Recuperação e aceleração fortalecimento da de Curto Sistemas de alerta preventivo: das aprendizagens educação infantil Prazo Identificação de alunos com Programas emocionais: alto risco de evasão/abandono Redução dos choques combinada com ações emocionais causados pela preventivas. pandemia Programas de transferência condicionada de renda: Alívio imediato da pobreza FUNDEB: Financiamento da Reforma dos últimos Reformas da BNCC: educação com foco na anos do Ensino Currículos de ensino Recuperação equidade Fundamental e Ensino de Longo Médio: Flexibilidade e apoio Prazo a regiões vulneráveis Estratégia de saúde da família: Prestação de Transferência condicionada de renda: serviços de atenção primária na saúde Foco adicional nos grupos fortemente afetados Recuperação Foco geográfico: Áreas ou regiões mais vulneráveis Equitativa Foco grupos: Mulheres Afrodescendentes, pessoas com deficiências Educação Inclusiva: Acesso à internet e dispositivos Mercado de trabalho: Acesso para mulheres, afrodescendentes Planejamento colaborativo O estado do Ceará e o Monitoramento e Replicação de casos de município de Sobral são acompanhamento sucesso exemplos de casos de sucesso Engajamento do governo e da equipe Programas federais: Pró-Infância e PDDE Algumas intervenções têm potencial de melhorar o capital humano a médio e longo prazo. Para identificar as motivações das políticas associadas à acumulação de capital humano ao longo dos anos, o RCHB analisou os ICHs municipais em relação às políticas e características locais. Políticas que ampliam a escola de tempo integral e reduzem os casos de gravidez na adolescência estão associadas a ICHs mais altos no componente de educação. Da mesma forma, as políticas contra a violência - principalmente aquelas que visam reduzir as taxas de homicídio - são um meio de influenciar o componente saúde adul- ta. Além disso, este mesmo exercício mostrou que o nível educacional dos adultos está ligado a melhorias nos indicadores de saúde infantil e nos resultados de aprendizagem das crianças. Para sair mais forte desta crise de capital humano, o Bra- sil precisa, antes de tudo, aprender consigo mesmo. Uma Para emergir recuperação sólida e de longo prazo exige a replicação de fortalecido, o Brasil boas práticas. O fato de existirem “muitos Brasis” pode ser precisa aprender Relatório de Capital Humano Brasileiro visto como uma oportunidade, visto que os municípios têm autonomia para buscar suas próprias soluções. Compreender consigo mesmo. por que alguns municípios vêm melhorando consistentemente o capital humano e tentar replicar seu sucesso será vital nos próximos anos. O estado do Ceará7 e o 7 Um breve panorama está disponível em: https://blogs.worldbank.org/education/there-no-magic-formula-brazils-ceara-and- -sobral-success-reduce-learning-poverty. Veja aqui uma discussão mais técnica e detalhada: https://documents1.worldbank.org/curated/en/200981594196175640/pdf/The-State-of-Ceara-in-Brazil-is-a-Role-Model-for- Reducing-Learning-Poverty.pdf. 12 município de Sobral8 são dois exemplos conhecidos no ensino fundamental. Pernambuco e Cocal dos Alves são outros dois modelos de políticas voltadas para o ensino médio. O Brasil deve se valer das di- versas políticas estaduais e municipais que surtiram resultados positivos. A recuperação e aceleração sustentáveis exigem sistemas públicos resilientes. Os governos devem estar preparados para superar desafios inesperados ou enfrentar as próximas crises climáticas e de saúde pública. Sistemas públicos resilientes conseguem adaptar rapidamente seus programas, elaborar políticas baseadas em evidências e tomar decisões mais bem informadas. Nesse sentido, o RCHB fez um levanta- mento dos municípios brasileiros com desempenho positivo “fora da curva” para identificar intervenções custo-efetivas. Essa pesquisa identificou cinco boas práticas comuns em nível local. Primeiro, todos esses municípios fizeram uso de planejamento colaborativo, com grupos de trabalho ou conselhos temáticos reunidos para resolver problemas específicos. Segundo, houve consultas públicas para monitorar e acom- panhar as atividades planejadas ao longo de vários anos. Terceiro, foram contratados funcionários respon- sáveis pela inserção e monitoramento de dados. Quarto, os governos definiram metas claras sobre saúde, educação (entre outras) e todas foram amplamente divulgadas para sociedade. Quinto, houve profunda implementação de programas federais que contribuíram para monitorar a prestação dos serviços. O capital humano é a força motriz por trás de grandes mudanças. É a chave para prosperidade mais equitativa e inclusiva. O RCHB é uma história que coloca as crianças como protagonistas. João e Raoni nas ruas, Bela e seus irmãos em casa, exemplificam o enorme talento que o Brasil historicamen- te pouco desenvolve. Muitos Brasis, prosperidade não-compartilhada, muitas desigualdades e talento ao trabalho são capítulos dessa história que o Brasil não pode mais ignorar. A mitigação dos efeitos da década perdida deve ser prioritária na agenda política e vista como uma oportunidade de tornar o Brasil um país mais igualitário e próspero. Este será o grande projeto que governos e sociedade devem estar alinhados para que os avanços sejam imediatos and sustentáveis. O futuro começa hoje. Relatório de Capital Humano Brasileiro 8 Loureiro, Andre; Cruz, Louisee. 2020. Achieving World-Class Education in Adverse Socioeconomic Conditions: The Case of Sobral in Brazil. World Bank, Washington, DC.,World Bank. https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/34150. 13