ANALYSIS OF SHARED STREETS Task B: Análise dos casos de políticas de transporte sustentável Parceiros: Novembro/2021 1 Centro de Inovação em Políticas Públicas – FGV Cidades Equipe do projeto: Coordenação geral: Pesquisadores: Ciro Biderman Bruna Pizzol Claudia Oshiro Coordenação executiva: David Escalante Sanchez Patrícia Alencar Silva Mello Diego Tomasiello Dustin Carlino Coordenadores de área: Gabriela Fischer Armani Claudia Acosta Gabriela Massuda Mariana Giannotti Gabriela Terentim Mariana Levy Gislene Pereira Frederico Roman Ramos Lucas Dias Cardoso German Freiberg Luiza Borges Robin Lovelace Taina Bittencourt Hannah Machado Taina Costa Sumi Mehta Tales Fontana Cunha Vitor Oliveira 1 Agradecimentos Agradecemos a Ana Waksberg Guerrini, Beatriz Moura dos Santos, Carlos Bellas Lamas, Gabriel Pereira Caldeira, Luca Di Biase, Maria Inês Garcia Lippe e Tais Fonseca de Medeiros pelos excelentes comentários e sugestões que aumentaram a qualidade do relatório de maneira substantiva. 2 SUMÁRIO Lista de Figuras ................................................................................................................................................ 4 Lista de Quadros .............................................................................................................................................. 5 Apresentação ................................................................................................................................................... 6 1. Introdução ................................................................................................................................................ 7 2. Conceitos chave: gestão da demanda por viagens e ruas completas ............................................. 10 2.1 Gestão da demanda de viagens .................................................................................................. 10 2.2 Ruas completas ............................................................................................................................. 13 2.3 O nexo entre gestão de demanda de viagens e ruas completas ............................................. 15 3. Casos estudados ................................................................................................................................... 17 3.1 Rodízio, São Paulo, Brasil (1997 - atual) ..................................................................................... 19 3.2 Restricción Vehicular, Santiago, Chile (1986 – atual) ................................................................ 20 3.3 Congestion charge, Londres, Inglaterra (2003 – atual) ............................................................. 21 3.4 Pico y Placa e Tasa por congestión, Cali, Colômbia (2005 – atual) ......................................... 23 3.5 Ecopass e Área C, Milão, Itália (2008 – atual) ............................................................................ 24 3.6 Zona Azul, São Paulo, Brasil (1975 – atual) ................................................................................ 25 3.7 Manual de desenho de ruas, Nova York, EUA (2009 – atual) ................................................... 27 3.8 Metrominuto, Pontevedra, Espanha (2011 – atual) .................................................................... 29 3.9 Áreas de velocidade reduzida, São Paulo, Brasil, (2013 – atual) ............................................. 30 3.10 Política de espaço público, Bogotá, Colômbia (2015 – atual) .......................................... 32 3.11 Superillas, Barcelona, Espanha (2016 – atual) .................................................................. 33 3.12 Projeto Cidade da Gente, Fortaleza, Brasil (2017 – atual) ................................................ 34 3.13 Caminhabilidade, Londres, Inglaterra (2018 – atual)......................................................... 35 3.14 Paris 15 minutos, Paris, França (2020 – atual)................................................................... 37 4. Lições dos estudos de caso ................................................................................................................. 39 5. Considerações finais ............................................................................................................................. 56 Referências ..................................................................................................................................................... 58 3 LISTA DE FIGURAS Figura 2.1. Diagrama explicativo dos componentes “afastar” e “atrair” na GDV. ................................... 11 Figura 2.2 Eixos de ação da abordagem Avoid-Shift-Improve. ................................................................. 13 Figura 2.3 Interseção entre GDV e Ruas Completas. ................................................................................. 16 Figura 4.1 Estratégias de comunicação adotadas no período de lançamento e implementação da política. .......................................................................................................................... Erro! Indicador não definido. 4 LISTA DE QUADROS Quadro 3.1 Grupos de análise para os casos selecionados. ..................................................................... 18 Quadro 4.1 Lições dos casos ....................................................................................................................... 39 Quadro 4.2 Estratégias de comunicação dos casos estudados ................................................................ 50 5 APRESENTAÇÃO O ponto de partida deste estudo é a problemática da cidade de São Paulo, a qual apresenta um sistema de mobilidade urbana ineficiente com marcado domínio, atenção pública e concentração de recursos em favor, especialmente, dos deslocamentos por transporte privado individual, e em detrimento de modos ativos e públicos coletivos. Essa problemática tem múltiplos efeitos negativos, em especial de saúde pública e iniquidade, penalizando a mobilidade das pessoas de baixa renda (maioria da população e principais usuários do transporte público), num modelo ambientalmente insustentável e com sérias consequências para a saúde pública e segurança da população, especialmente daqueles de maior vulnerabilidade e menor liberdade de escolha na mobilidade. Assim, o projeto se propõe estudar de forma detalhada diversos componentes desta problemática com o intuito de melhor compreender a situação atual e propor alternativas e mecanismos factíveis de serem implementados na cidade de São Paulo com o fim de alcançar mudanças orientadas à promoção de modos sustentáveis (ativos e coletivos) e o desincentivo ao uso dos veículos individuais motorizados. O presente relatório tem sido elaborado pelas equipes da Fundação Getúlio Vargas (SP), Vital Strategies, REDES Planejamento e Política Pública e Firma Levy e Romeiro Sociedade de Advogados, e corresponde à segunda de cinco etapas do Projeto Analysis of Shared Streets in São Paulo, desenvolvido sob a gestão do Banco Mundial, com recursos do United Kingdom Prosperity Fund em parceria com a Prefeitura de São Paulo. Este relatório apresenta a análise de diversos instrumentos de política pública de Gestão de Demanda de Viagens e Ruas Completas com o objetivo de dar insumos às políticas de transporte da cidade de São Paulo orientadas ao aumento da participação dos modos saudáveis (ativos e coletivos) que serão discutidas nos seguintes passos desse projeto. Para isso, foram analisados 14 casos em 11 cidades com diversos contextos, incluindo três medidas implementadas na cidade de São Paulo, agrupados em: (1) Intervenções orientadas à gestão da demanda de viagens e redução do uso do transporte individual motorizado; (2) Intervenções orientadas a ruas completas e priorização dos modos ativos; e (3) Intervenções orientadas à redução de distâncias). Da análise, extraiu-se lições que se aplicam às políticas de transporte sustentável da cidade de São Paulo. A descrição detalhada de cada caso encontra-se como anexo deste documento. 6 1. INTRODUÇÃO Após vários anos de negacionismo, finalmente o mundo parece ter se convencido de que o fenômeno de aquecimento global é um fato e que precisamos tomar atitudes concretas imediatamente ou a qualidade de vida deve piorar drasticamente. Como sabemos, nas áreas urbanas, o transporte é o responsável por pelo menos metade das emissões dos gases do efeito estufa. Adicionalmente, além do efeito ambiental (não apenas sobre a mudança climática, mas também sobre a qualidade do ar), os congestionamentos gerados pelos modos individuais motorizados acabam por reduzir ainda mais a qualidade de vida nos grandes centros. Todas essas questões combinadas implicam que não é mais aceitável assistir de braços cruzados a composição deletéria do transporte urbano. Nesse sentido, diversas cidades no mundo começaram a implementar políticas públicas urbanas buscando incentivar os modos ativos e o transporte público e/ou desincentivar os modos individuais motorizados. Nesse documento analisamos uma seleção relativamente arbitrária dessas políticas com o objetivo de entender como São Paulo poderia se beneficiar do que ocorreu no resto do mundo para implementar suas políticas públicas no mesmo sentido. Analisamos também as experiências de São Paulo para compreender o que já foi realizado e as dificuldades enfrentadas. Procuramos contribuir para a cidade tanto no sentido de melhorar as políticas públicas existentes como no sentido de criar novas políticas se aproveitando das experiências em outros locais. No Brasil, os transportes são responsáveis por metade das emissões de gases de efeito estufa (GEE) do setor de energia (Albuquerque et al 2020) enquanto na cidade de São Paulo, a contribuição dos transportes chega a 61% das emissões totais de GEE (São Paulo 2020). Em relação aos impactos na saúde, os veículos motorizados são responsáveis por grande parte das emissões de poluentes nocivos à saúde. Em São Paulo, por exemplo, o transporte é responsável por 37% das emissões de material particulado 2,5 (CETESB 2019). No país, em 2019, 61 mil pessoas morreram em decorrência da poluição do ar. Os transportes também são responsáveis por mortes por sinistros de trânsito1: na cidade de São Paulo 809 pessoas morreram e quase 10.000 pessoas ficaram feridas em 2020 (CET-SP 2021). As externalidades negativas dos transportes também impactam de forma desigual os cidadãos, afetando de forma desproporcional às populações de menor renda e em situação de 1 O termo “sinistro de trânsito” passou a vigorar em substituição a “acidente de trânsito” em novembro de 2020 (ABNT NBR 10697:2020). 7 vulnerabilidade. Em São Paulo, por exemplo, pessoas de baixa renda, que moram na periferia e têm baixa escolaridade sofrem maiores efeitos de mortalidade por MP10 (Bravo et. al. 2016). Observam-se também maiores efeitos de mortalidade por NO2, SO2, e CO em pessoas de baixa escolaridade (Martins 2004). Nesse estudo apresentamos intervenções pontuais que procuram mudar esse panorama que se tornou absolutamente insustentável. Apesar da opção por intervenções pontuais, visto que elas são mais pragmáticas e o objetivo central desse estudo é auxiliar a formulação de políticas públicas urbanas, uma estratégia integral requer um conjunto amplo e articulado de ações, que criem os incentivos e as condições suficientes para promover as mudanças nos padrões de mobilidade da cidade. Assim, para avaliar o potencial de certas intervenções, é fundamental levar em conta o efeito combinado de uma série de medidas associadas. Ou seja, em alguns casos vamos considerar não somente a implementação de ruas completas e restrições ao uso do automóvel em determinados perímetros, mas também outras ações como a ampliação e a melhoria do sistema de transporte público e da rede cicloviária no restante da cidade que complementam e enriquecem os instrumentos pontuais. Por esse motivo, mesmo que o escopo do projeto esteja mais voltado a intervenções na rede viária para priorizar a mobilidade ativa e a desincentivos ao uso do transporte individual motorizado (TIM), é importante incluir nos cenários de avaliação algumas premissas relacionadas à melhoria dos serviços de transporte público e à criação de rede de infraestruturas para bicicletas. Este documento está dividido em cinco seções. A primeira delas é composta por esta introdução. Em seguida, a segunda seção apresenta considerações conceituais, em especial as abordagens de política pública de Gestão de Demanda de Viagens e Ruas Completas, conceitos que embasam o agrupamento dos casos sob estudo e suas considerações. A terceira seção apresenta a análise de 14 casos em 11 cidades com diversos contextos, incluindo três medidas implementadas na cidade de São Paulo (a seleção dos casos obedeceu maioritariamente à indicação pelo proponente). Os casos são apresentados em três agrupamentos em função do objetivo predominante no instrumento, pois diversos instrumentos apresentam mais do que um objetivo (Grupo 1. Intervenções orientadas à gestão da demanda de viagens e redução do uso do transporte individual motorizado; Grupo 2. Intervenções orientadas a ruas completas e priorização dos modos ativos; Grupo 3. Intervenções orientadas à redução de distâncias). A quarta seção apresenta os principais achados dos casos e os transforma em lições aprendidas para orientar os próximos passos dentro do projeto. A última seção reúne as considerações finais. 8 A descrição detalhada de cada caso encontra-se como anexo deste documento. Para cada caso se contemplou um conjunto de informações que incluem: resumo, contexto, objetivos, instrumento(s) e sua implementação, arranjo regulatório, recursos, atores, investimentos, estratégia de comunicação, resultados, e considerações finais. As fontes consultadas para os casos foram, em sua grande maioria, fontes secundárias disponíveis pela na internet. 9 2. CONCEITOS CHAVE: GESTÃO DA DEMANDA POR VIAGENS E RUAS COMPLETAS Inicialmente, optamos por apresentar dois conceitos chave para este trabalho, que constituem a base para esta e para as demais etapas do estudo: "Gestão da Demanda por Viagens" (GDV) e "Ruas Completas" (conceito que dá nome ao projeto). O objeto de análise e o escopo de proposições deste projeto apoiam-se em ambas, que possuem forte complementaridade e sinergias, mas que também têm especificidades que as diferenciam e, portanto, carecem de uma discussão que ajude a dar maior clareza conceitual a este documento bem como aos demais produtos. 2.1 Gestão da demanda de viagens O presente estudo tem como objetivo geral avaliar medidas orientadas à mobilidade sustentável por meio da promoção de mobilidade ativa e transporte público e de desincentivos ao uso do transporte individual motorizado. Uma parte importante das iniciativas estudadas ancoram-se no que se costuma denominar como estratégias de gestão da demanda por viagens (GDV) ou travel demand management (TDM), em inglês. Esse conceito propõe que a combinação adequada de uma série de ações, no seu conjunto, cria condições e incentivos para que as pessoas mudem suas decisões para a realização dos deslocamentos cotidianos e transformem assim seus padrões de mobilidade para escolhas mais sustentáveis, eficientes e equitativas. Geralmente as estratégias de GDV conjugam medidas econômicas, também denominadas de medidas de comando, regulatórias, físicas e operacionais para promover as mudanças desejadas nas preferências de viagem, como por exemplo: • Redução do uso do transporte individual motorizado (TIM); • Promoção de modos ativos (mobilidade a pé e o uso da bicicleta); • Promoção do uso do transporte público coletivo (TPC); • Mudanças de horários das viagens (para reduzir a concentração nos horários de pico e fomentar que os deslocamentos ocorram em períodos do dia menos congestionados); • Mudanças de destinos das viagens (favorecendo que as atividades possam ser realizadas em destinos mais próximos, diminuindo as distâncias percorridas e reduzindo a concentração de deslocamentos em áreas congestionadas); 10 • Redução de deslocamentos desnecessários. Assim, procura-se agir simultaneamente nos desestímulos às escolhas não desejadas (uso do TIM, viagens motorizadas longas e concentradas espacialmente e nos picos) e no incentivo às alternativas preferíveis (modos ativos, transporte coletivo, deslocamentos mais curtos e fora dos picos). A Figura 2.1 ilustra esquematicamente o conceito como uma combinação de ações para “Afastar” e para “Atrair”, chamando também a atenção para medidas que conseguem cumprir ambos os objetivos ao mesmo tempo, a exemplo da redistribuição do espaço viário reduzindo a área para o automóvel e realocando-a para pedestres, bicicletas e transporte público. Figura 2.1. Diagrama explicativo dos componentes “afastar” e “atrair” na GDV. Fonte: Ríos, Vicentini e Acevedo-Daunas (2013). 11 A abordagem Reduzir-Mudar-Melhorar (mais conhecida pela terminologia em inglês Avoid- Shift-Improve) oferece um marco metodológico útil e prático para avançar na formulação de estratégias de GDV de maneira integral. Nela, são aproveitadas as oportunidades de mudanças estruturais onde houver potencial e viabilidade para transformações nos padrões e escolhas de viagem, ao mesmo tempo em que se promovem ações para melhorar a eficiência energética nos diversos sistemas de transporte. As técnicas tradicionais de planejamento de transportes formuladas e aplicadas ao longo do século XX, baseadas na a bordagem “predict and provide”, tiveram um papel central na conformação de cidades orientadas ao TIM, priorizando fluxos veiculares, fluidez e velocidade (Boyce e Williams, 2015). Estamos vivendo, no entanto, uma mudança de paradigma em como concebemos e como construímos nossas cidades para lidar com os problemas que marcam o século XXI, o que também se traduziu em novos métodos e ferramentas para o desenvolvimento de soluções (Lovelace, 2021). Assim, a adoção dos princípios de Reduzir-Mudar-Melhorar serve como base para orientar a mobilidade urbana rumo a resultados mais sustentáveis, eficientes e equitativos através de três eixos principais (Figura 2.2): • Reduzir ou evitar a necessidade de deslocamentos motorizados para a realização de atividades. Este eixo busca aumentar a eficiência dos sistemas como um todo, reduzindo o número de veículos-quilômetro. O foco é reduzir as distâncias e os tempos gastos pela população nos deslocamentos cotidianos, permitindo assim inclusive aumentar a quantidade e diversidade de atividades realizadas diariamente. • Mudar as decisões de modos de transporte escolhidos pelas pessoas para efetuar seus deslocamentos. Este eixo busca aumentar a eficiência das viagens efetivamente realizadas, promovendo a migração de modos menos sustentáveis como automóvel e motocicleta para alternativas mais sustentáveis como andar a pé, bicicleta e transporte coletivo. • Melhorar a eficiência energética da frota e da operação dos sistemas para reduzir o impacto ambiental das viagens motorizadas necessárias. Este eixo busca aumentar a eficiência energética dos veículos, considerando os deslocamentos remanescentes para os quais não foi possível reduzir nem mudar de modo. Ações deste tipo devem ser aplicadas tanto aos veículos individuais quanto aos coletivos. 12 Figura 2.2 Eixos de ação da abordagem Avoid-Shift-Improve. Fonte: SLoCaT (2019) 2.2 Ruas completas O conceito de “rua completa” apoia-se na compreensão de que a via (ou seja, a rua, de um lote ao outro, incluindo a calçada) é espaço público e, portanto, deve ser projetada levando em consideração o contexto urbano em que se insere, alinhando as necessidades de mobilidade com a convivência social. Nesse sentido, propõe-se equilibrar as necessidades dos diferentes modos de transporte, beneficiando pessoas de todas as idades e habilidades, em conformidade com o uso do solo, a economia e o ambiente natural local (Santos et. al. 2021). Conceitos similares vêm sendo construídos desde os anos 1970, denominados como “planejamento sensível ao contexto”, “humanização do tráfego”, “ruas de pedestres” e “moderação de tráfego”. Neste relatório, ruas completas são tratada s como um conceito de rua que coloca o pedestre em primeiro lugar e proporciona acesso seguro, confortável e conveniente para todas as pessoas, independentemente das habilidades de locomoção e do modo de transporte utilizado. Uma rua se torna mais completa quando atende às suas vocações como via de movimentação segura para todos que a frequentam e como espaço público de convivência. É importante destacar que ruas completas não precisam necessariamente ter espaço designado para cada um dos modos de transporte. Ou seja, a configuração da rua deve permitir que suas funções dentro do sistema de mobilidade sejam exercidas oferecendo segurança e conforto às pessoas que a utilizam. As “ruas compartilhadas” são um tipo de intervenção entre outras 13 existentes com objetivos comuns voltados à promoção da mobilidade a pé, uso de bicicletas, melhoria da qualidade do espaço público e criação de espaços de convivência, além do aumento da segurança viária. Mas a ideia da "rua compartilhada" (um caso específico de uma "rua completa") é que os modos podem compartilhar o espaço sem que isso implique no domínio de um modo sobre o outro. O conceito de ruas completas é apresentado de forma diagramática no quadro analítico desenvolvido pela Transport for London (2013) que caracteriza a variedade de papéis que as vias desempenham em função de duas variáveis: “movimento” e “atratividade”. Temos ruas com alta atratividade e com muito movimento como, por exemplo, os grandes pontos de transferências de passageiros. Esses são exatamente os locais onde se implantou a primeira fase das "ruas calmas" (uma experiência da CET-SP que dialoga com o conceito de ruas completas como discutido a seguir). Há casos de grande movimento mas com pouca atratividade como, por exemplo, as marginais em São Paulo. Esse caso nos mostra como essa classificação é endógena. A marginal tem pouca atratividade por conta de sua geometria e do fato de que os rios Tietê e Pinheiros estão poluídos. Se mudarmos a geometria da via e recuperamos os rios, a marginal passa a ser de grande atratividade; seria possível realizar talvez o maior parque linear urbano do planeta. Mesmo que essa tipologia seja endógena ela já nos orienta a tomada de decisões imediatas. Certamente os locais com um grande volume de transferências de modos de transporte com concentração comercial exigem medidas como a redução de velocidade, ciclovias, restrição a veículos particulares, etc. para permitir o uso das vias pelos diversos modos de forma segura. Vias locais sem grande movimento nem grande atratividade não necessitam de grandes intervenções; são facilmente compartilháveis simplesmente se pensando, por exemplo, no tipo do piso. No fundo, a calçada para esse tipo de via, nem seria desejável sobretudo se a rua for arborizada. Ao longo deste trabalho vamos nos concentrar no estado atual das vias. Ou seja, vamos pegar a geometria e as condições ambientais como "dadas". Assim, mudanças estruturais não serão consideradas para fins da ideia de "Ruas Completas". Essa decisão reflete uma estratégia de ação onde podemos alterar as condições dos espaços com investimentos relativamente baixos, bem como um custo político gerenciável. As vias de grande circulação sem atratividade no momento não serão objeto de modificação, enquanto áreas comerciais com concentração de transferências entre modos serão um dos principais objetos de ação, para dar um exemplo. 14 2.3 O nexo entre gestão de demanda de viagens e ruas completas Nesse estudo aproveitamos as oportunidades e as sinergias da interseção dos dois conceitos descritos acima. As abordagens de GDV e Ruas Completas compartilham muitos princípios e propósitos, e constituem estratégias com forte complementaridade para a construção de cidades mais sustentáveis. Diferem em termos do escopo principal de suas ações, mas possuem uma grande sobreposição em função do alinhamento de vários objetivos comuns. É importante, portanto, apontar tanto as semelhanças quanto as diferenças para dar maior clareza conceitual ao uso de ambos os assuntos ao longo do trabalho. Enquanto a GDV utiliza instrumentos econômicos, regulatórios, operacionais e físicos para criar condições e incentivos que promovam mudanças nas decisões das pessoas relativas aos seus deslocamentos e mudar assim os padrões de viagem na cidade, as Ruas Completas representam as próprias transformações dos espaços à procura de maior atratividade, segurança e saúde colocando os pedestres como elemento central do desenho urbano e da rede viária. A Figura 2.3 apresenta de forma esquemática essa sobreposição, apontando exemplos de medidas na interseção entre GDV e Ruas Completas, bem como exemplos de tipos de intervenção associados mais fortemente a uma das duas abordagens. Cabe destacar que a existência de medidas e de objetivos vinculados somente (ou predominantemente) a uma das abordagens não significa que sejam conflitantes nem excludentes. Por exemplo, políticas de cobrança por congestionamento ou a proibição de entrada de veículos particulares em determinados períodos e/ou horários visam fundamentalmente alterar as escolhas de viagem e promover a migração modal, sem necessariamente estar associadas a intervenções na configuração física da rede viária. Entretanto, em muitos casos há grande potencial de combiná-las com a implementação de corredores exclusivos de TPC, ciclovias, ampliação de calçadas e/ou requalificação de espaços públicos aproveitando a redução do fluxo de veículos particulares. A Gestão de Demanda de Viagens e as Ruas Completas refletem a mudança de paradigma das políticas de transporte que visam responder aos problemas decorrentes do modelo de cidade do século XX, que se baseia no uso do transporte individual motorizado, resultando em impactos negativos nas esferas ambiental, social e econômica. Portanto, as políticas de transporte sustentável visam a melhoria da sustentabilidade, equidade e eficiência na distribuição e no uso do espaço urbano, como: Redução da emissão de GEE; Redução da emissão de poluentes nocivos à saúde; Aumento da prática de atividades físicas; Redução do 15 número de mortos e feridos no trânsito; Melhoria da saúde pública; Redução dos tempos de viagem; Distribuição mais equitativa dos acessos a oportunidades; e Redução de barreiras de acesso ao transporte. Figura 2.3 Interseção entre GDV e Ruas Completas. Fonte: Elaboração própria. Nesse projeto procuramos sempre que possível aproveitar sinergias e a potencialidade de ações complementares, sejam como objeto de análise ou como premissas. A combinação de medidas econômicas de comando (usando o sistema de preços para tal) combinadas com um redesenho de ruas é um exemplo desse tipo de sinergia. Por exemplo, ao taxar os veículos por seu impacto no congestionamento devemos abrir espaço para os modos ativos. Assim, sempre estaremos pensando em soluções utilizando uma combinação de instrumentos para que seja possível chegar ao objetivo final de um transporte sustentável e mais igualitário para todos. 16 3. CASOS ESTUDADOS Nesta seção apresentamos a análise de 14 casos que apresentam diversos mecanismos de política pública de promoção do transporte sustentável (modos ativos e coletivos), seja como objetivo principal ou como consequência de outros objetivos. Apresentamos casos que ocorreram em 11 cidades mais 3 medidas implementadas na cidade de São Paulo. A seleção dos casos obedeceu à indicação pelo proponente, exceto nos casos de Bogotá (Colômbia) e Fortaleza (Brasil), os quais foram propostos pela equipe FGV/Vital. A apresentação detalhada de cada um dos casos encontra-se no anexo deste relatório. Os casos foram organizados em três grupos em função do componente predominante no instrumento(s) utilizado(s), conforme a seguir: • Grupo 1. Intervenções orientadas à gestão da demanda de viagens e redução do uso do transporte individual motorizado Neste grupo, destacam-se ferramentas de política pública voltadas à gestão da demanda, com objetivos como reduzir o uso do transporte individual motorizado e internalizar externalidades negativas associadas à sua circulação. A maior parte dos instrumentos deste grupo estão associados também à promoção do transporte público coletivo, como premissa importante das estratégias de GDV. • Grupo 2. Intervenções orientadas a ruas completas e priorização dos modos ativos Este grupo inclui ferramentas e estratégias orientadas à reconfiguração do viário, à transformação do espaço público e a priorização da sua função como lugar de convivência, melhoria do ambiente construído, orientação no uso do espaço urbano, ganhos de gestão pública e comunicação, que direta ou indiretamente priorizam os modos ativos (a pé e de bicicleta). • Grupo 3. Intervenções orientadas à redução de distâncias de deslocamento Aqui destacam-se políticas públicas que visam reduzir as barreiras e as impedâncias para a realização de atividade e o acesso à cidade, seja pela maior proximidade entre a população e os potenciais destinos de serviços, educação, empregos, saúde, lazer, etc., seja pela diminuição de distâncias percorridas ou de tempos de percurso ou mesmo pela redução de deslocamentos desnecessários. Contudo, é importante sublinhar que muitos casos apresentaram mais de uma ferramenta de política pública (por exemplo, Milão e Cali), ou mais de um objetivo de política pública, com 17 interdependência entre elas. Assim, a divisão que se propõe, apresentada no Quadro 3.1 parte da ferramenta mais relevante adotada pela cidade em análise. Quadro 3.1 Grupos de análise para os casos selecionados. Caso Cidade País Início Instrumentos Grupo 1. Intervenções orientadas à gestão da demanda de viagens e redução do uso do transporte individual motorizado Rodízio São Paulo Brasil 1997 Taxa Restricción Vehicular Santiago Chile 1986 Taxa Congestion charge London Inglaterra 2003 Taxa Pico y Placa & Tasa por Cali Colômbia 2005 Taxa congestión Área C e Ecopass Milan Itália 2008 Taxa Zona Azul São Paulo Brasil 1975 Taxa Grupo 2. Intervenções orientadas a ruas completas e priorização dos modos ativos Manual de desenho de ruas Nova York EUA 2009 Planejamento urbano e Nudge Metrominuto Pontevedra Espanha 2011 Tecnologia e nudge Área de velocidade reduzida São Paulo Brasil 2013 Planejamento e design urbano Política de espaço público Bogotá Colômbia 2015 Planejamento urbano e nudge Superillas Barcelona Espanha 2016 Planejamento e design urbano Projeto Cidade da gente Fortaleza Brasil 2017 Planejamento e design urbano Plano de caminhabilidade Londres Inglaterra 2018 Planejamento e design urbano Grupo 3. Intervenções orientadas à redução de distâncias de deslocamento Paris 15 minutos Paris França 2020 Planejamento e design urbano Fonte: Elaboração própria. Apesar de nenhum dos casos se referir diretamente à promoção do transporte público coletivo, foram incorporadas informações relativas à transformações desse modo de transporte dado seu vínculo com às medidas sob análise nos casos de Londres (Inglaterra), Santiago de Chile (Chile), Santiago de Cali, Bogotá (Colômbia) e São Paulo (Brasil, áreas de velocidades reduzida). Antes de apresentar cada um dos casos, discutimos os componentes que permitem classificá-los, facilitando o seu uso para fins de implementação de políticas públicas. Esta seção é mais descritiva do que analítica, deixando a análise para a seção 4 do documento. Ainda que a descrição detalhada apareça no anexo, os resumos apresentados a seguir fazem uma síntese de cada caso para facilitar a compreensão das principais lições aprendidas. 18 3.1 Rodízio, São Paulo, Brasil (1997 - atual) O rodízio da cidade de São Paulo foi instituído em 1997 com o objetivo principal de diminuir o fluxo de automóveis particulares e, com isso, reduzir o congestionamento nas vias urbanas do município. Como segundo objetivo propunha-se a redução da poluição atmosférica. A fiscalização é realizada pela CET (Companhia de Engenharia de Trânsito) da cidade e sua inobservância implica na aplicação de multa. Como principais mudanças durante seus quase 25 anos de vida, observam-se ampliações de veículos isentos (acompanhando a tendência de outras cidades) e a extensão da medida a veículos pesados (2008). Não foram identificados ajustes incrementais vinculados a objetivos de gestão de demanda de viagens nem efeito de longo prazo de redução do uso do transporte individual motorizado em favor da mobilidade sustentável. Apresenta um formato de comunicação tradicional. Similar a outras experiências, observou-se monitoramento e avaliação no início da medida (último Boletim da CET identificado foi de 2005), efeito de curto prazo de melhoria no congestionamento, e um efeito "colateral" indesejável de incentivo à aquisição de um segundo veículo (em muitos casos mais antigo e, portanto, com maior índice de emissão de poluentes). Na época de sua inserção, uma pesquisa realizada pelo jornal O Estado de São Paulo, publicada no dia 15 de março de 1998, revelou que dentre os entrevistados, 38% passaram a utilizar o ônibus no dia do rodízio de seus carros, 26% adotaram o metrô e 6% se deslocaram a pé. A parcela que recorreu a um segundo veículo foi de 14,3%. Contudo, a curta janela de oportunidade para a mobilidade sustentável não foi acompanhada de melhorias na infraestrutura de forma a garantir e fixar a mudança de escolha de modo de transporte pelos cidadãos. Os recursos arrecadados pela infração à medida se distribuem da seguinte forma: 5% para o Fundo Nacional de Segurança e Educação no Trânsito (Funset) e 95% para o Fundo Municipal de Desenvolvimento do Trânsito (FMDT); para o último não se identificou participação da sociedade civil em sua administração, ainda que apresente ações em prol da transparência. Dos recursos administrados pelo FMDT destinam-se unicamente 5% à melhoria do transporte público coletivo (ampliação, manutenção, reforma e qualificação de terminais, faixas exclusivas e corredores de ônibus). Portanto, os fundos do Rodízio praticamente não beneficiam o transporte público, o que significa que o mesmo não foi originalmente pensado como uma medida que deveria ser acompanhada pela melhoria no transporte público para que fosse sustentável. Ainda que profundamente inserida na cultura dos motoristas da cidade, em 2019, cerca de um quarto das infrações de trânsito ocorridas na cidade corresponderam a inobservância do rodízio (2,4 milhões de infrações, com arrecadação potencial de R$314,5 milhões de reais), o 19 que sugere espaço para a introdução de um instrumento complementar de taxa por congestionamento. Outras experiências indicam que a introdução de uma taxa por congestionamento abre também uma janela de oportunidade para a mudança a modos sustentáveis, a qual precisa de medidas orientadas a melhorar sua oferta num breve período. 3.2 Restricción Vehicular, Santiago, Chile (1986 – atual) A restrição veicular de Santiago do Chile foi implementada pelo governo federal em 1986 com o objetivo de melhorar a qualidade do ar da capital chilena, através da proibição da circulação de veículos em 43% do território. A medida vigora durante os meses de inverno das 7h30 às 21h de segunda a sexta e se aplica aos veículos de acordo com o dígito final da placa. A medida é fiscalizada de forma eletrônica, mas também manual em vias sem câmeras. Inicialmente focada em veículos com maior emissão de poluentes, a medida sofreu diversos ajustes incrementais e um aumento no seu rigor no tipo de restrição, veículos afetados, tempos e áreas de proibição de circulação, em função principalmente da qualidade do ar. Atualmente a restrição de circulação pode se intensificar (mais placas restritas, inclusive no final de semana) em dias com elevados níveis de poluição do ar nos quais são decretados estados de pré-emergência ou emergência ambiental. São utilizados diversos canais para informar sobre a qualidade do ar e mudanças nas restrições. A medida continua mostrando utilidade para fins de melhoria da qualidade do ar via redução de emissões de poluentes (juntamente com medidas regulando a atividade industrial e outras proibições). Apesar da urgência de saúde pública, os longos anos de implementação da medida e sua alta restrição, as pesquisas não apontam redução do uso de automóveis maior que 20%. Sua introdução incentivou à aquisição de um segundo veículo e, no caso específico, também à renovação da frota de automóveis, perdendo a oportunidade de incentivar maior migração para modos ativos e coletivos. Na época se reportou pouca mudança de comportamento em favor do transporte público coletivo (registrou-se apenas um incremento de 3% no uso do metrô). Contudo, dado que a medida tem incorporado regras cada vez mais restritivas, a introdução do BRT e a integração entre ônibus e metrô (2007), podem ter favorecido o uso desses modos pelos usuários do veículo particular em dias de restrição, inclusive pelo fato de que, em picos de poluição, o governo desincentiva o uso de modais ativos. A introdução do Transantiago implicou na modernização da frota, com impacto positivo na qualidade do ar. A Red (substituta do Transantiago) estabeleceu como um de seus principais objetivos a substituição da frota por ônibus elétricos e tipo Euro VI. 20 Apesar de ser uma política que perdura por mais de três décadas em diferentes configurações, existe pouca transparência em relação aos recursos arrecadados com multas por infrações à medida e sua destinação. Não foram identificadas informações relativas aos dados financeiros e de efetividade da medida. Atualmente a cidade discute diversas ações de mobilidade saudável bem como a cobrança de uma taxa de congestionamento. Como já discutido no caso do rodízio de São Paulo, as restrições veiculares impõem desincentivo ao uso do veículo particular motorizado, mas esses incentivos parecem ser de curto prazo. Os mesmos se traduzem em preferência por modos mais sustentáveis apenas quando há incentivos ou condições específicas favoráveis para tal. Caso contrário tendem a apresentar incrementos na taxa de motorização via aquisição de um segundo veículo. 3.3 Congestion charge, Londres, Inglaterra (2003 – atual) A Congestion Charge (CC) de Londres foi estabelecida em 2003 com o objetivo de redução da circulação de transporte individual motorizado no perímetro central e diminuição da poluição do ar. Está baseada na cobrança de uma taxa para quem adentrar o perímetro de intervenção. Em conjunto com a introdução da política, a prefeitura aumentou a frota de ônibus em 300 veículos, com novos itinerários e 8.500 novas rotas cicláveis. Como resultado, um ano depois foi possível observar a redução do trânsito em 30% em relação ao habitual antes da medida. Apesar do congestionamento continuar existindo após a implementação da medida, como seria de se esperar, observou-se a partir de então uma mudança gradual em favor de modos saudáveis. No período entre 2001 e 2017, as viagens feitas por carro reduziram de 46% para 36%. Houve também um aumento de 29% para 37% no uso do transporte público, além de um aumento de 27% nos trajetos realizados a pé ou de bicicleta. Dentro da zona de aplicação da restrição veicular, os deslocamentos de bicicleta aumentaram em 66% desde a implementação da medida até 2019. Contudo, a Congestion Charge deve ser vista como uma das medidas, de uma série, que progressivamente abarcavam maiores perímetros da grande Londres e atingiram mais veículos particulares. A medida foi implementada a partir de estudos específicos e um plano de ação com suporte regulatório, estrutura institucional para sua gestão, apoio e recursos de diversos atores públicos, e diálogo com atores privados e a cidadania a fim de garantir seu engajamento. Desde seu início, essas medidas têm sido acompanhadas com melhorias importantes e contínuas no transporte público, na infraestrutura da mobilidade ativa, e na eficiência na 21 distribuição de bens e serviços vinculados à mobilidade saudável. No decorrer das medidas observa-se cada vez mais um embasamento em saúde pública (London Health Strategy). A taxa por congestionamento é monitorada e fiscalizada de forma eletrônica. A arrecadação obtida pelo pagamento da taxa e pelas infrações à medida é direcionado, por lei, a melhorias no transporte público incluindo a operação e manutenção. A medida apresenta seguimento contínuo, incluindo não só dados de arrecadação como análise da performance, seus impactos e benefícios sociais, econômicos e ambientais. O instrumento apresenta um importante embasamento de comunicação e participação para informar, sensibilizar e conscientizar sobre o caráter coletivo do problema do congestionamento inicialmente, e mais recentemente, da poluição do ar. Na introdução da cobrança, o plano facilitou sua aceitação, evitou repetir erros de outros casos e ajudou os cidadãos no planejamento das mudanças modais e de rotinas. Diferentemente das soluções de controle (restrições veiculares) como o rodízio de São Paulo ou de Santiago de Chile, a taxa por congestionamento de Londres tem se mostrado consistente e eficiente no tempo para atingir metas de redução de congestionamento, redução de emissões de poluentes e reorientação dos cidadãos para o transporte público e modos ativos além de ganhos expressivos de segurança viária. Ainda mais, apresenta o grande benefício de não incentivar de forma direta a compra de um segundo veículo. Uma grande diferença entre esses dois tipos de medidas é que a taxa por congestionamento não diferencia o tipo de automóvel ou atribui a proibição de circulação à loteria do final da placa do carro. A mensagem é muito clara: qualquer um que queira circular no perímetro determinado pode fazê-lo desde que indenize à cidade pela poluição e tráfego gerado. Nota-se também que a política desdobrou-se em outras duas medidas de restrição com foco explícito na redução da poluição do ar: a Low Emission Zone e a Ultra Low Emission Zone. É um caso de grande sucesso de uma política que se diferencia de medidas similares, por não ter sido impulsionada nem centrada na arrecadação, ainda que a mesma tenha se tornado com o tempo uma fonte importante de financiamento de melhorias no sistema de transporte público. Contudo, é fundamental sublinhar que ao mesmo tempo as condições de oferta do transporte público e das infraestruturas para a mobilidade ativa melhoraram progressivamente. A taxa por congestionamento de Londres, junto com outras medidas, é um grande sucesso em favor do transporte público e da mobilidade ativa. 22 3.4 Pico y Placa e Tasa por congestión, Cali, Colômbia (2005 – atual) A política de ‘Pico y Placa’ de Santiago de Cali na Colômbia iniciada em 2005 é uma restrição de circulação de veículos particulares, do tipo rodízio, nos picos da manhã (das 06h às 10h) e da tarde (das 16h às 20h), de acordo com o último dígito da placa do veículo. Em 2017, a cidade adotou também a Tasa por congestión o contaminación, que permite, mediante pagamento de uma taxa, a circulação de veículo em todo o perímetro urbano no seu dia de restrição de ‘Pico y Placa’. O objetivo do Pico y Placa foi a redução do congestionamento, enquanto a Tasa por congestión buscou ao mesmo tempo reduzir as externalidades negativas decorrentes do uso do transporte privado individual e melhorar as condições de financiamento do transporte público coletivo. O Pico y Placa apresentou mudanças incrementais e de embasamento, migrando de uma orientação à melhoria do tráfego, para questões ambientais e de segurança viária. O caso segue a evolução de medidas de gestão de demanda de viagens observada em diversos locais, nos quais primeiro é introduzida a restrição veicular (controle) e, posteriormente, o uso de uma taxa (comando). Similar a outros casos, as duas medidas se apoiam nos mesmos órgãos públicos e sistemas de fiscalização. Em Cali, o nome da taxa sugere a presença de duas externalidades negativas associadas ao TIM: congestionamento e poluição. Assim, a taxa é introduzida com a finalidade de evidenciar a presença dos efeitos negativos gerados pelo uso do automóvel e para que aqueles que optam pelo TIM internalizem tais efeitos, mesmo que parcialmente. Dentro das taxas estudadas, a Tasa por congestión o contaminación é, talvez, a medida mais forte dado que abrange a totalidade da cidade (se afastando de Londres onde a área de abrangência é bem limitada) sem criar tratamentos preferenciais para aqueles que são residentes ou por tipo de veículo (nesse sentido próxima da medida londrina, exceto que a medida londrina fornece algumas vantagens para os moradores do perímetro de restrição). Algo interessante do ponto de vista político é que a medida foi votada e aprovada pelo Concejo Municipal da cidade (o equivalente à Câmara de Vereadores) com amplo debate, embora pudesse ter sido aprovada de forma direta pelo executivo municipal via decreto. Vale também trazer o contexto colombiano neste momento. O governo nacional aprovou um conjunto de instrumentos à disposição dos municípios com a finalidade de melhorar as fontes de financiamento dos sistemas de BRT (que atravessavam por crescentes problemas de déficit e fornecimento de serviços), em um ponto no qual o país observava altas taxas de motorização individual. Dentre os instrumentos disponíveis estavam as taxas por congestionamento, a 23 cobrança por estacionamento em via pública e a cobrança por concentração de estacionamentos em locais privados (como shopping centers), numa clara orientação à gestão de demanda de viagens e fortalecimento do transporte coletivo. Os municípios podiam implementar os instrumentos sem debate público, via decreto municipal, ou com debate público a partir da decisão das câmaras de vereadores. Cali foi pioneira em implementar a taxa por congestionamento e o fez a partir do debate político. Atualmente, a cidade de Bogotá estuda implementar o mesmo instrumento. Ainda que os recursos arrecadados pelas taxas desse tipo sejam destinados prioritariamente para objetivos de gestão de demanda de viagens (em especial para o transporte coletivo) e Ruas Completas, não é esse o motivo que mobilizou sua implementação. A necessidade urgente de encontrar fontes alternativas de recursos para financiar o BRT foi o gatilho disparador da adoção da medida (95% da arrecadação é destinada a esse quesito). Não foram identificados estudos posteriores de monitoramento e avaliação, nem estratégias de comunicação adequadas para favorecer sua implementação. Contudo, a taxa vem mostrando crescente adesão pelos cidadãos, os quais estão dispostos a pagar pela utilização do veículo no dia de restrição. 3.5 Ecopass e Área C, Milão, Itália (2008 – atual) Milão é uma das cidades com maiores taxas de motorização e poluição no mundo. O Ecopass e a Área C, são uma sucessão de medidas orientadas a melhorar a qualidade do ar na cidade, diretamente afetada pelo uso intensivo de automóveis. Em 2008, o governo municipal instituiu o programa Ecopass, onde veículos mais poluentes passaram a pagar uma taxa para adentrar à região central da cidade. A política estava em discussão desde 2006, mas uma decisão da UE sobre redução da poluição em 2008 foi o gatilho que garantiu a implantação da política. O Ecopass esteve vigente por pouco mais de dois anos, e teve como efeito principal a troca da frota de automóveis para tecnologias menos poluentes (isentos da restrição veicular). Contudo, também implicou no aumento do tráfego e não resultou em mudanças de comportamento em favor de modos saudáveis. Em 2011 o Ecopass foi desativado e substituído em 2012 pelo programa "Área C". A Área C tem o mesmo perímetro que o Ecopass e instituiu uma taxa por congestionamento que se aplica para maioria dos veículos particulares; proíbe expressamente a entrada de veículos com motor Euro 3 ou inferior, e concede um tratamento preferencial para os residentes da área de restrição (40 acessos gratuitos por ano e uma taxa reduzida para acessos adicionais). A Área C apresenta uma mudança muito importante nos objetivos e abrangência da política pública, procurando não apenas a redução da poluição, mas: i. a reorientação dos cidadãos para o 24 transporte público; ii. a melhoria da qualidade de vida (ambiental, de segurança viária e saúde pública); iii. a internalização de externalidades negativas pelos usuários do automóvel; e iv. a geração de fontes de financiamento para a mobilidade ativa e o transporte público coletivo (a taxa se direciona para investimento nesses quesitos). Assim como realizado em Londres, a inauguração do Ecopass foi acompanhada de medidas de construção de novas faixas exclusivas, maiores frequências de ônibus e aumento da cobrança por estacionamentos. Um número expressivo de multas foi reportado no começo da medida, o que alertou sobre problemas de pagamento e informação, os quais foram resolvidos com uma inovadora estrutura de pagamento e ampla campanha de comunicação. Tanto o Ecopass quanto a Área C reportaram resultados positivos em redução de poluição. Contudo, a Área C evidenciou resultados de longo prazo em melhoria de circulação de veículos e ganhos no uso de modos ativos e transporte público coletivo. A queda em sinistros também é um resultado relevante. Os recursos arrecadados são significativos para o financiamento de ações de melhoria no transporte público e do transporte cicloviário. Finalmente, a experiência de Milão é relevante do ponto de vista político. O Ecopass, implementado em caráter experimental durante toda sua vigência, apresentou resultados pouco claros em relação aos impactos esperados e esteve acompanhado de fortes debates e alta politização na disputa eleitoral. Para legitimar a Área C, o novo prefeito realizou um referendo popular, que, surpreendentemente, superou as expectativas de adesão popular. Esta estratégia favoreceu a implantação definitiva da medida e seu reconhecimento como mecanismo legítimo para atingir os objetivos desejados, os quais, por sua vez, foram construídos como objetivos sociais. 3.6 Zona Azul, São Paulo, Brasil (1975 – atual) A Zona Azul, é uma medida muito antiga, por meio da qual o município realiza outorga onerosa de uso temporário do espaço público para fins de estacionamento por particulares. Essa é talvez a medida de GDV mais antiga no mundo. Os primeiros parquímetros datam do final dos anos 1930 em Oklahoma. A sua expansão nos Estados Unidos se deu no final dos anos 1960. São Paulo é pioneiro na implementação do estacionamento pago em vias públicas no Brasil. Se orienta a promover o uso eficiente do espaço público destinado a vagas de estacionamento nas vias públicas da cidade, privilegiando seu uso para atividades de curta duração em áreas com alta demanda de viagens e concentração de oportunidades. Ainda que instituído e gerido na lógica do aproveitamento econômico do espaço público, é certamente uma medida intrinsecamente vinculada com a gestão da demanda e de grande importância para conduzir e induzir as preferências dos cidadãos por modos públicos e ativos. 25 A medida apresentou pouquíssimas mudanças no tempo, sendo as mais relevantes a digitalização, ocorrida em 2016, e a concessão onerosa da operação para a iniciativa privada em 2020 (possibilidade prevista desde 1997). A partir da concessão, a prestação do serviço público de estacionamento é explorada de forma indireta pelo governo. Em termos práticos, tal decisão implicou na antecipação de receita por parte do governo e mudanças substanciais em sua destinação. Antes, a arrecadação se dirigia diretamente à operação da CET. A partir da concessão, os recursos advindos da exploração econômica do espaço público para estacionamento são incorporados ao Fundo de Desenvolvimento Municipal, o qual apresenta um amplo leque de objetivos a serem atendidos, o que reduz as possibilidades de que recursos provenientes dessa ferramenta possam ser orientados para fortalecer objetivos de políticas de mobilidade urbana como o transporte público e a mobilidade ativa. Durante a vigência da concessão, a definição da localização e quantidade de vagas disponíveis permanece sob o comando do governo municipal, contudo, vinculada ao compromisso de uma receita garantida ao concessionário. Isso porque o desenho da concessão foi realizado a partir do estado atual de oferta dos serviços. Qualquer modificação pode levar a um desequilíbrio econômico e, portanto, estaria sujeita à revisão contratual. Apesar de ter passado por transformações neste período, como a ampliação do número de vagas disponibilizadas e a substituição dos talões em papel para o cartão de estacionamento digital, a dinâmica da política permanece orientada aos fins de exploração econômica. Na realidade, a inércia nessa ferramenta é o padrão no mundo, com exceção de San Francisco como discutiremos mais adiante. Nesse sentido, a medida não explora seu enorme potencial na orientação da mobilidade na cidade. Por exemplo, caberia o uso de tarifa dinâmica em função da demanda por determinadas localizações e a cobrança de tarifa progressiva em função do tempo de uso do espaço público para favorecer modos ativos e transporte público via o desincentivo do uso do automóvel. No mesmo sentido, caberia a reflexão em relação à distribuição do espaço público viário destinado ao automóvel em relação ao destinado a calçadas, ciclovias e faixas de ônibus. A falta de informações sobre monitoramento e avaliação da medida pode estar vinculada à prevalência de entendimento do instrumento como mecanismo de exploração econômica do espaço público, e não do ponto de vista de gestão de demanda e distribuição do espaço público viário entre os modos. Nesse sentido, é um paradoxo que a concessão do serviço implicasse o monopólio da venda da Zona Azul digital, enquanto no período 2016 - 2020 fosse permitida a concorrência entre aplicativos com cobertura metropolitana, estadual e até mesmo federal. 26 3.7 Manual de desenho de ruas, Nova York, EUA (2009 – atual) Mais do que um manual em sentido estrito, o Manual de Desenho de Ruas da Cidade de Nova Iorque (New York City Street Design Manual) é uma resposta eficiente da gestão pública a um problema de falta de priorização das calçadas como componente central da mobilidade e a consequente falta de coordenação entre os atores para alcançar objetivos de melhoria do espaço público. O Manual é uma ferramenta de gestão pública que orienta os diversos atores em relação ao cuidado do espaço público da cidade, suas regras, responsabilidades, responsáveis e procedimentos (priorizando calçadas, praças, e integrando-as com ruas e avenidas). Antes da adoção do manual, a visão fragmentada e utilitária de cada ator (e atividade) se impunha na gestão do espaço público. Dentre os problemas identificados e que resultaram no descuido permanente do espaço público e a ausência de condições adequadas e segurança para sua fruição pelos pedestres, identificavam-se: a demora na aprovação de intervenções; desarticulação e excesso de trâmites e instâncias de decisão; multiplicidade de regras e seu desconhecimento; problemas de fiscalização; e de coordenação entre atores, incluídos os proprietários de imóveis, responsáveis pela manutenção de boa parte das calçadas da cidade. O ponto de partida para a realização do manual e a transformação na gestão pública foi o reposicionamento do espaço público dentro das prioridades públicas; o reconhecimento da situação caótica existente, dos prejuízos sociais, ambientais e econômicos derivados da condição que apresentava o espaço público, em especial as calçadas da cidade; e de sua relevância como infraestrutura que responde por um terço dos deslocamentos na cidade. A adoção do Manual foi fruto de um árduo trabalho intersetorial e com representantes da sociedade e significou uma forte mudança na conceituação e visão do espaço público não carroçável posicionando-o como um componente central da mobilidade (e vitalidade urbana). Do ponto de vista material, se trata de uma peça integral, que precisa de um olhar conjunto com regras, procedimentos e objetivos claros de intervenção. Ainda que o Manual tenha sido o resultado da ação conjunta de diversos atores chaves, como destacam os documentos da iniciativa, o apoio central ao longo do processo e a articulação de atores se deu pelo Departamento de transportes da cidade. O Manual guia os funcionários públicos, profissionais da área (arquitetos, urbanistas, engenheiros e afins), grupos comunitários e outras entidades envolvidas no planejamento e desenho de ruas. O Departamento de transportes da cidade usa o Manual para revisar os projetos apresentados quanto à qualidade e consistência. Por esta razão, é possível classificar 27 o Manual como uma peça refinada de planejamento e de gestão, visto que subsidia o trabalho da prefeitura e organiza o papel dos atores no processo de aprovação de projeto de ruas. Tecnicamente é um manual de projeto para todos os envolvidos no planejamento de ruas e espaços públicos. Inclui diretrizes para diversas escalas sobre mobiliário urbano, infraestrutura e redesenho de vias, praças, calçadas, travessias, e iluminação pública. O manual é a única referência sobre regras aplicáveis às ruas, comum a todos os atores, e fornece informações em diversos âmbitos: técnico (desenho), jurídico-institucional (regras, processos de aprovação e regularização), administrativo (manutenção e organização) e social (mecanismos para processos colaborativos e inclusivos). A principal força do manual está no apoio e envolvimento das diversas instâncias envolvidas na administração pública da cidade e sua observância pelos atores privados. Também tem recebido apoio político e institucional, pois deve ser revisado e atualizado a cada quatro anos para se manter vigente e garantir a coordenação de tantos atores que incidem no espaço público. A atualização é fruto de reuniões participativas interdepartamentais e conta com diversos outros mecanismos participativos. Já está na terceira edição atualizada e agora disponível on-line facilitando sua atualização, consulta e difusão. Dentre as mudanças recentes observam-se as relativas à ciclovias, desenho inclusivo de ruas e a seleção e gerenciamento de paisagem. O Manual apresenta importantes frutos de coordenação com a melhoria da qualidade do espaço público imediata, aumento da cobertura vegetal na cidade, melhoria na iluminação pública e importantes resultados de segurança viária, o que tem favorecido a priorização do modo a pé como meio de deslocamento. Trouxe um ganho muito relevante de governança viária. Do ponto de vista da gestão pública, tem significado uma diminuição substancial do tempo de aprovação de projetos, que demonstra o efeito positivo sobre a governança no serviço de planejamento urbano da cidade e aprovação da gestão pública. Ao contar com regras claras e comuns, os envolvidos apresentam suas iniciativas já alinhadas às exigências e objetivos definidos de forma conjunta e não em função da lógica operacional da instituição a que corresponda um determinado procedimento ou autorização. Outro ponto notável é a padronização e uniformização da linguagem para o planejamento de ruas, de forma acessível. Nesse sentido, pode ser considerada como um nudge para que os atores privados colaborem com o planejamento urbano estabelecido pela prefeitura, visto que deixa as regras claras a priori e orienta a ação dos atores privados na mesma linha dos interesses públicos. 28 3.8 Metrominuto, Pontevedra, Espanha (2011 – atual) O Metrominuto é um mapa, similar ao mapa do metrô, que indica as distâncias e tempos de caminhada entre diversos pontos de interesse da cidade de Pontevedra. O mapa é exposto em pontos de ônibus, praças, parques e placas por toda a cidade, além de estar disponível no formato digital em aplicativo para celular. O Metrominuto busca destacar o caminhar como uma opção atrativa, viável e eficiente de transporte e fornecer informações relevantes na tomada de decisão do pedestre, principalmente os tempos de deslocamento, tipos de percursos, e segurança (se percursos arborizados ou em zonas exclusivamente de pedestres, por exemplo). Através do Metrominuto, o governo tem conseguido solidificar no imaginário dos cidadãos que dispõem de um modo de transporte: os pés. Caminhar é proposto como o modo mais saudável, simples e democrático de se deslocar na cidade e, em muitos casos, mais rápido do que outros meios. Esse tipo de informação é muitas vezes desconhecido pela população em geral. O Metrominuto, o Paraminuto e o Caminho Escolar fazem parte de um longo histórico na cidade de mudanças orientadas a dar protagonismo à mobilidade ativa, por meio da redistribuição dos recursos e do espaço público viário, antes disponíveis de maneira quase única para o transporte individual motorizado. Desde 1999, o centro histórico é considerado zona de absoluta prioridade ao pedestre, conta atualmente com 300 mil m2 de calçadões, e medidas similares para bicicleta. A transformação da cidade começou com uma intenção política clara: defender o espaço público e garantir o direito da população a ter acesso ao mesmo em condições adequadas, seguras e convidativas. Decidida a intenção, atores, recursos e ações têm sido progressivamente estruturadas e priorizadas em função do objetivo de transformar a cidade num espaço dinâmico e de convívio, o que tem rendido frutos muito importantes como a transformação de uma cidade expulsora para uma cidade receptora de população e oportunidades. A implantação de diversas estratégias tem implicado em importantes negociações intersetoriais e intergovernamentais, para, por exemplo, reorientar o fluxo veicular intra e inter-regional evitando atravessar a cidade. Em 2010, a Prefeitura implementou a redução da velocidade de automóveis para 30km/h em todo o município, com aprimoramento contínuo da integração modal e alternativas para quem vem de fora da cidade, além de estratégias articuladas de logística urbana. O conjunto de ações se embasa na melhoria da saúde da população tanto por maior atividade física quanto por redução de impactos negativos do automóvel. Destaca a estratégia de comunicação pela simplicidade e força da mensagem, além da oferta de informação clara, em locais de tomada de decisão sobre deslocamento como as áreas de integração modal, e é apresentado em diversos formatos de divulgação. Quanto mais 29 difundido, maior seu alcance. Não implica em grandes despesas, e já foi replicado em muitas cidades, demonstrando-se como uma inovação importante em política pública. Não foram identificados estudos específicos de monitoramento ou avaliação de impacto, contudo os dados mostram a efetividade da opção continuada por uma mobilidade saudável que conta hoje com legitimidade política e social, com melhores condições de qualidade de vida, índices excepcionalmente bons de segurança viária, alta qualidade do ar, ganhos sociais associados ao espaço público e menor dependência do automóvel. 3.9 Áreas de velocidade reduzida, São Paulo, Brasil, (2013 – atual) As áreas de velocidade reduzidas são perímetros definidos na cidade de São Paulo onde a velocidade máxima regulamentada é 30 km/h ou 40 km/h. Esse instrumento tem como objetivo principal aumentar a segurança viária, reduzindo as lesões e mortes no trânsito - principalmente de pedestres a partir do controle de velocidade dos veículos motorizados em áreas definidas. Entende-se que a redução de velocidade faz a rua mais segura para todos seus usuários, de forma expressiva para pedestres e ciclistas, e mais atrativa para a mobilidade ativa e coletiva, modos de utilização mais frequentes para as pessoas de baixa renda. A medida, de iniciativa da CET-SP, faz parte de um plano maior de gestão de velocidade na cidade iniciado em 2009. A política prevê três fases de implementação: (1) criação de áreas 40 (velocidade máxima de 40 km/h), (2) consolidação urbana (por meio de melhorias no desenho urbano) e (3) transformação em áreas 30 (velocidade máxima de 30 km/h). A definição dos perímetros das áreas 40 foi dada pelo alto volume de pessoas circulando a pé, alta concentração de lesões e mortes no trânsito e por se caracterizarem como centralidades comerciais com, ou próximas de, infraestruturas de transporte de alta capacidade com taxas altas de transferências entre modos. Entre 2013 e 2016, a cidade de São Paulo estabeleceu 13 áreas de velocidade reduzida, mas apenas duas avançaram para a fase 2 e nenhuma para a fase 3. Os locais em que foi implementada a fase 1 (redução de velocidade), apresentaram redução de mortes e lesões no trânsito, percepção de melhora física e de segurança após a intervenção ainda que, para alguns cidadãos, implicasse em piora no tráfego percebido, a medida foi considerada adequada a replicada em outros locais. Também foram observadas mudanças comportamentais positivas tanto no comportamento dos condutores quanto dos pedestres a favor da segurança viária. Não se observou estratégia inicial de comunicação para além dos meios tradicionais de sinalização horizontal e vertical. Já na segunda fase, foram realizadas 30 ações participativas e de engajamento comunitário com apoio de organizações parceiras da Prefeitura. As dificuldades experimentadas na implementação da fase 2 do instrumento refletem problemas estruturais em relação ao espaço público para pedestres e ajudam a compreender sua situação precária na cidade. Se a fase 1 se caracterizou pelo controle e autonomia da CET para sua implementação e pelo sucesso na superação de obstáculos e aceitação da medida pela população, a fase 2 evidenciou a ausência de um "lugar" para a melhoria do espaço público de pedestres nas instituições, gestão pública e financiamento. Mesmo que o modo a pé responda por 1⁄3 dos deslocamentos na cidade, que pedestres sejam os principais alvos de sinistros no trânsito e que as áreas de velocidade reduzida sejam um mecanismo eficiente e de baixo custo para melhorar a segurança viária, a implementação da fase 2 (ou seja, das obras de moderação de tráfego) enfrenta inúmeros obstáculos. O primeiro deles é a pulverização de funções e competências governamentais acerca do espaço público enquanto objeto de intervenção. Esta situação coloca num limbo institucional obras fundamentais para salvar vidas, de baixo custo e execução material simples como: o alargamento da calçada, a criação de ilhas de refúgio, o compartilhamento de ruas através de mudanças no piso, entre outras medidas de baixo custo e alto impacto. O segundo deles é a orientação de instituições, procedimentos de gestão pública e estruturação de contratação de obra pública voltados a grandes e custosas obras viárias, os quais resultam incompatíveis com a natureza, escala e baixo custo das obras das áreas de velocidade reduzida. O terceiro é a perda de fontes de financiamento direcionadas para tais ações. Parte representativa dos recursos para sinalização, equipamentos de fiscalização (radar) e obras de segurança viária no ambiente construído advém de dois fundos municipais, o Fundurb (vinculado a receitas de arrecadação da OODC) e o FMDT (vinculado a receitas de mobilidade). Infelizmente em 2019 o recurso do Fundurb, originalmente destinado à mobilidade ativa e coletiva, foi alterado permitindo seu uso para melhorias nas vias estruturais e com isso direcionando mais uma vez o esforço público e social à favor dos veículos motorizados individuais e em prejuízo da mobilidade sustentável, a saúde pública e a segurança viária. Em suma, a experiência de implementação das áreas de velocidade reduzida indica a urgência na cidade de estabelecer o espaço público para pedestres como uma peça integrada fundamental para a mobilidade, segurança e sustentabilidade urbana. O terço de viagens a pé realizados diariamente na cidade em condições de precariedade e a sinistralidade não parecem ser suficientes ainda para que tal objetivo receba a prioridade que precisa na agenda pública e política da cidade. 31 3.10 Política de espaço público, Bogotá, Colômbia (2015 – atual) Bogotá destaca-se pela recuperação (manutenção) e ampliação (provimento) dos espaços públicos e por sua gestão urbana, onde diversos atores são mobilizados para a prossecução de objetivos comuns. A política de recuperação e ampliação dos espaços públicos está apoiada em um sólido sistema de planejamento urbano que orienta o plano específico de intervenção no espaço público. Bogotá apresenta um caso específico na América Latina de estruturação e fortalecimento incremental de uma política de espaço público. Com data de início em 2005 por meio do Plan maestro de espaço público e diversos instrumentos e objetivos, a cidade vem consolidando os componentes regulatório, institucional, urbanístico, de financiamento, de monitoramento e social da política. A cidade conta com instituições específicas criadas para gerir os espaços públicos que atuam de forma transversal às atuações públicas e privadas de provimento e manutenção, como a Defensoria do Espaço Público, a Secretaria Municipal encarregada do espaço público e o Observatório do Espaço Público. Essas instituições favorecem a continuidade das políticas públicas ao longo de diversos mandatos e podem ser acionadas pela comunidade para defesa e proteção do espaço público, entendido como um elemento de interesse e proteção pública. Identificam-se importantes fontes de financiamento do espaço público destinado à mobilidade ativa, como a contribuição de melhorias, obrigações urbanísticas e outros instrumentos de planejamento territorial. Conta também com acordos com a comunidade em casos específicos de recuperação ou restituição do espaço público. Também foi desenvolvido o marco regulatório de aproveitamento econômico do espaço público para áreas com vocação de uso comercial e misto. No convênio o governo da cidade permite aos particulares a exploração econômica do espaço público em troca de compromissos que incluem manutenção e melhoria de espaços públicos e percursos caminháveis. A política de espaço público trabalha em consonância com outras políticas de mobilidade, tal como a de transporte público massivo, que, apesar de muitos problemas, é destaque mundial em função da quantidade de corredores criados ao longo dos anos; bem como políticas sucessivas de ampliação de ciclorrotas. Destacam também as ações de provimento e melhoria do espaço público em assentamentos precários e a recuperação de espaços públicos (principalmente em calçadas) que se encontravam tomados pelos automóveis como vagas de estacionamento. O objetivo macro é a redução do uso de automóveis particulares como opção prioritária de deslocamento bem como a melhoria da qualidade de vida e ambiental da cidade. Contudo, observa-se certa fragmentação no olhar do espaço público, a qual pretende ser superada por meio da política distrital de espaço público e a criação sistema distrital de espaço 32 público orientados a melhorar as diversas gestões e articulações entre atores e recursos para garantir um espaço público adequado. 3.11 Superillas, Barcelona, Espanha (2016 – atual) O projeto das Superillas (Supermanzanas, em catalão) de Barcelona2, se destaca por ser uma proposta de combate aos impactos na saúde, econômicos e sociais causados pela poluição do ar, sonora e pelas ilhas de calor vinculadas ao tráfego de veículos e congestionamento no meio urbano. As Superillas têm a intenção de reverter a lógica de um urbanismo voltado à circulação de veículos motorizados, dando prioridade aos deslocamentos a pé e em bicicleta e à função social e de vitalidade urbana do espaço público. A transformação das quadras urbanas, por meio deste projeto, é decidida de forma participativa com a população local e outros atores (públicos e privados). A estratégia central é mostrar os benefícios das ruas compartilhadas aos habitantes locais através do urbanismo tático, mobiliário urbano qualificado, demarcação de áreas através de pinturas de piso e paisagismo, para serem consolidadas ao longo do tempo e em função da disponibilidade de recursos. Este tipo de estratégia também é observado no caso do Projeto “Cidade da Gente” em Fortaleza, Brasil. O projeto pretende redistribuir o espaço público viário retirando espaço dos automóveis e repassando para modos ativos e novas áreas verdes. Foi lançado em 2013 dentro do plano de mobilidade urbana. O projeto piloto da superquadra de Poblenou expôs as etapas de realização: ações temporárias de urbanismo tático, intervenção de médio prazo para teste pelos residentes e o governo, execução definitiva. Também acabou revelando os obstáculos e as reações da população à ideia. Apresenta um histórico tanto de apoio quanto de forte oposição política e descontinuidade institucional, que se espera que seja superada com a recente criação do Conselho Consultivo das Superillas (janeiro de 2021). 2 Superilla é uma proposição de desenho urbano sobre a malha já existente da cidade de Barcelona. Das quadras projetadas pelo Plano Cerdà (Plano urbano original para a 'extensão' da cidade de Barcelona, ou seja, o Eixample, do progressista planejador urbano catalão Ildelfons Cerdà do século 19, considerou as necessidades humanas de iluminação natural, ventilação, espaço aberto e vegetação, e uma rede de transporte que acomodasse bastante os pedestres, carruagens puxadas por cavalos e linhas de bonde público), cria-se uma quadra urbana de 400x400m incorporando projetos de compartilhamento viário, restrição à circulação de veículos particulares, criação de espaços de lazer e verde. 33 A iniciativa conta com recursos do próprio município e do banco europeu de investimento para o cenário 2030, porém sem considerar nenhuma fonte associada às mudanças no uso e aproveitamento do solo nem por valorização fundiária. Destaca no instrumento o espaço para a participação social, com bastante repercussão internacional, mas baixa adesão local e crítica pela mídia. Na prática, apenas três projetos foram implementados desde a fase piloto em 2014 de um total de mais de 500 quadras propostas. Não foram identificados relatórios de avaliação de impacto. 3.12 Projeto Cidade da Gente, Fortaleza, Brasil (2017 – atual) O projeto Cidade da Gente nasce como uma estratégia para enfrentar problemas vinculados ao trânsito na cidade, em especial de segurança viária, poluição e saúde. Por meio de mudanças nas condições físicas do espaço público, em especial em calçadas e outros componentes correlatos, busca-se promover o olhar sobre a via pública não exclusivamente como infraestrutura para o serviço do transporte motorizado, em especial o individual, mas como local que acolhe as pessoas, permite seu convívio e favorece os modos ativos. As principais ferramentas do projeto são as medidas de redução de velocidade para os veículos motorizados e intervenções no espaço físico orientadas à segurança viária (como o alargamento de calçadas). O projeto estabelece duas fases de implantação: discussão de projeto teste com a comunidade da área de intervenção e realização de intervenções temporárias e, uma vez transcorrido o prazo do teste, uma segunda fase de discussão para ajustes e realização de intervenções definitivas. O projeto roda sem aparato legal (lei, portaria etc), mas ancorado no Plano de redução de mortes no trânsito. A gestão do projeto é feita pela Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Urbanos e executada pela Autarquia Municipal de Trânsito, com apoio de parceiros externos como a NACTO-GDCI, World Resources Institute Brasil, Vital Strategies (no âmbito da Iniciativa Bloomberg pela Segurança Global no Trânsito) e UNIFOR. Os parceiros apoiam principalmente o desenho da estratégia de intervenções no meio físico e de comunicação, fundamentais para sua aceitação e apropriação pela comunidade. É uma iniciativa nova com amplo potencial de crescimento dentro das escolhas políticas na cidade; destaca a interação comunitária, que permite a participação direta da população no desenho do projeto a ser implantado. Até o momento foram realizados testes em três áreas da cidade sendo que o primeiro (Bairro Cidade 200) conta com uma intervenção definitiva. 34 3.13 Caminhabilidade, Londres, Inglaterra (2018 – atual) O Walking Action Plan (WAP), ou Plano de Ação de Caminhabilidade (em uma tradução literal), de Londres é provavelmente o plano mais abrangente focado no pedestre que existe no mundo hoje em dia. Motivado pela análise de resultados das ações anteriores da TfL, o plano parte de uma evidência que leva à priorização do modo a pé de deslocamento. Em 2000, quase metade das viagens em Londres se davam por modos motorizados individuais (48%), enquanto 27% das viagens eram feitas em transporte público. Em 2018, após a implementação de medidas de priorização do transporte sustentável, a participação do modo individual cai para 37% enquanto o transporte público aumenta para 36% (Londres, 2019). Nesse mesmo período, o uso da bicicleta essencialmente dobrou de 1,2% para 2,4%. No entanto, ao longo do mesmo período, as viagens a pé passaram de 24% para 25%, um aumento tímido (Londres, 2019; vide Figura 14.2 do anexo). Certamente a série de políticas adotadas em Londres, notadamente a cobrança por congestionamento e a transferência dos recursos arrecadados para o transporte público tiveram um papel crucial nessa mudança relevante que se observou no período. A malha cicloviária robusta implantada também teve papel chave no aumento do uso desse modo. No entanto, a falta de uma atenção especial para os deslocamentos a pé deve ser um dos fatores que fizeram com que esse modo tenha tido um aumento tão tímido na sua participação em um período de amplas mudanças em direção a um transporte mais sustentável. Os dados dizem um pouco mais. Apesar de um sucesso relativo muito alto no transporte cicloviário, com um aumento de 100% no seu uso, esse meio continua sendo em certa medida residual. É difícil crer que se consiga avançar muito mais se consideramos o que já se fez de investimentos nesse modo. Mesmo que seja possível um crescimento de mais 50%, o modo chegaria a 3% das viagens. O transporte público também parece estar esgotando sua capacidade de atração. Se considerarmos o alto custo do uso do automóvel em Londres com a cobrança por congestionamento somada à cobrança por emissões ULEZ) e a alta qualidade do transporte público de Londres, imagina-se que o espaço para se avançar na troca do modo individual motorizado para o modo coletivo motorizado já está se esgotando. Onde há maiores esperanças é na migração do modo individual motorizado para o modo individual a pé. O WAP tem uma meta bastante ambiciosa de aumentar a participação do modo a pé em cerca de 20% (de 6.4 milhões de viagens/dia em 2018 para 7.6 milhões/dia em 2024) chegando, portanto, próximo de 30% do total de viagens. Imagina-se (ainda que não esteja claro nos documentos) que o objetivo seria reduzir essa participação nos modos individuais motorizados. Se bem-sucedido, Londres poderia chegar em uma divisão modal na qual os 35 modos ativos teriam uma participação igual ou até superior ao transporte individual motorizado. As metas do WAP incluem também reduzir a inatividade física, a qual é responsável pela morte de 1 em cada 6 pessoas no Reino Unido e tem um custo para o sistema de saúde de 1£ bilhão por ano; aumentar o comércio local em até 40% por meio de melhorias em projetos de caminhabilidade; reduzir os custos do tráfego e congestionamento em Londres, os quais custam £9.5bn/ano; incentivar o ciclismo, o qual pode contribuir em £5.4bn/ano para a economia. (Department for Transport, 2020; Transport of London, s.d.; Walking & cycling: the economic benefits) A prefeitura e o departamento de transportes (TfL) de Londres propõe no WAP diversas iniciativas para que o projeto seja implementado gradativamente. Em termos de investimentos, o WAP pretende projetar, construir e gerenciar vias para as pessoas que caminham, proporcionando melhores espaços públicos, mais percursos de pedestres e faixas de pedestres mais numerosas e mais largas, além do investimento em mobiliário urbano. Em termos regulatórios, o projeto procura garantir que a caminhada seja priorizada em cada novo projeto de infraestrutura, por meio de novas ferramentas desenvolvidas procurando garantir suporte para que os bairros desenvolvam suas próprias estratégias e projetos a nível local. O programa traz também um programa de capacitação de milhares de crianças. O objetivo é dobrar o número de escolas credenciadas que defendem rotas saudáveis e apoiar a abertura de vias exclusivas para o pedestre, estabelecendo dias sem carro e impondo limites de velocidade de 20 mph (30 km/h) em torno das escolas. A meta é aumentar de 53% para 57% o número de crianças se deslocando a pé para as escolas. Em termos tecnológicos, pretende-se alterar a tecnologia de sinalização de trânsito com o objetivo de tornar mais seguro e fácil para os pedestres cruzarem as vias, minimizando o congestionamento simultaneamente. Não está claro nos documentos analisados como esses objetivos em geral competitivos podem ser coadunados. Inclui também um novo conceito denominado de ‘Active Travel Hubs’, que consiste em ações no entorno das estações do metrô, tornando mais fácil a integração entre a viagem a pé e de metrô nos deslocamentos diários. Uma parte chave do WAP é a integração com os bairros (boroughs) de Londres. Essa interação inclui desde a realização de workshops e fóruns regulares com bairros e outros parceiros para compartilhar as melhores práticas e impulsionar a mudança e a inovação até o financiamento de ações realizadas diretamente pelos bairros de £139 milhões ao longo dos cinco anos do WAP por meio do Plano de Implementação Local (LIP). O guia do programa estabelece que 36 as orientações devem estar alinhadas às coletividades locais dos bairros e seus representantes. O WAP traz também um componente importante de monitoramento. Isso inclui a continuidade no monitoramento de melhores práticas internacionais, bem como avaliação das iniciativas criadas em Londres, e divulgação de resultados para bairros e outros parceiros. Cria também um esforço de monitoramento do progresso em direção às metas estabelecidas pelo plano, relatando-o anualmente no relatório "Travel in London”, que analisa e compila os resultados e dados sobre o transporte e modos de deslocamento na cidade. 3.14 Paris 15 minutos, Paris, França (2020 – atual) O programa de governo conhecido como “Paris 15 minutos” objetiva tornar a cidade 100% ciclável e que todos os munícipes consigam ter acesso a qualquer serviço com deslocamentos de até 15 minutos. Paris já conta com um número reduzido de trânsito por automóveis particulares, uma proporção bem inferior de deslocamentos utilizando transporte individual motorizado, uma taxa excepcionalmente alta de deslocamentos a pé (61%), e uma distância de até 3 km para 72% dos deslocamentos, apresentando condições muito favoráveis para tornar a meta de Paris 15 minutos factível de ser atingida. Esse contexto específico e os debates e exigências europeus sobre qualidade do ar, desenvolvimento sustentável e transição ecológica também incorporados no plano climático da cidade, embasam a ideia de Paris 15 e políticas de mobilidade ambiciosas. Paris 15 minutos é uma ideia de campanha ancorada na visão de uma cidade de proximidade que ainda precisa ser estruturada como política pública. Para reduzir a circulação de veículos motorizados (e emissões de CO2) e, em paralelo, incrementar o uso de modos ativos e acessibilidade, são considerados entre outros aspectos: i. soluções para o gargalo do transporte de mercadorias, que representam uma fração importante da frota de veículos baseados em combustíveis fósseis que circula na cidade; ii. um plano de redução de vagas de estacionamento de veículos particulares, que inclui transferência de vagas para estacionamentos subterrâneos, a introdução de sistemas de cobrança e tarifários, um sistema de informação sobre disponibilidade de vagas e uma forte campanha de comunicação, e iii. desenho dos projetos urbanísticos da cidade, visando a redução de necessidades de deslocamentos de longa duração, iv. outras ações urbanísticas e sociais. Destaca que a recuperação do espaço hoje destinado a estacionamento não obedece unicamente a uma estratégia físico-espacial, mas a uma reivindicação da sua natureza e 37 condição de espaço público, uma democratização do mesmo para servir às pessoas (calçadas, pistas cicláveis, praças, arborização). A pandemia abriu uma oportunidade muito bem aproveitada para a criação provisória de uma extensa rede cicloviária, boa parte da qual será mantida, já mostrando importantes resultados em mobilidade e maior uso por usuárias. 38 4. LIÇÕES DOS ESTUDOS DE CASO Nesta seção, apresentamos a análise dos casos estudados em função do componente predominante do instrumento(s) utilizado(s), que reúne os casos em três grupos, como apresentado no Quadro 3.1. A análise relaciona os achados com os casos da cidade de São Paulo, uma vez que o objetivo desta atividade é dar subsídios à formulação de políticas de transporte sustentável da capital paulista. O Quadro 4.1 traz um resumo das lições aprendidas nos diversos estudos de caso. Quadro 4.1 Lições dos casos A partir da análise dos casos, é possível elencar diversas ações a serem adotadas pelo poder público para garantir que a implantação de instrumento visando a priorização dos modos ativos e coletivos de deslocamento seja bem-sucedidas: ❖ Utilizar o sistema de preços criando cobranças de modos que geram externalidades negativas e subsídios aos modos que geram externalidades positivas. ❖ Adotar uma comunicação estratégica adequada ao contexto, com engajamento da população, especialmente no caso de medidas impopulares. ❖ Se unir à agenda de saúde pública e de contenção da mudança climática para a priorização das políticas. ❖ Realizar testes e experimentos temporários para avaliar a medida e ajudar na elaboração da estratégia de comunicação. ❖ Institucionalizar a política em termos administrativos (conselho, departamento, peças de planejamento, etc) ou jurídico (lei). ❖ Alinhar processos e visões com vistas a diminuir a fragmentação da responsabilidade/governança sobre o espaço público. ❖ Utilizar nudges/incentivos para mudar o comportamento dos indivíduos. ❖ Definir claramente e institucionalizar o destino dos recursos arrecadados. ❖ Revisar e adequar continuamente a política pública. A seguir discutimos mais especificamente cada grupo de intervenções em termos do que elas aportam para a Cidade de São Paulo. O Grupo 1 traz aprendizado ao uso de medidas de controle e de comando para reduzir os incentivos ao transporte individual motorizado. A nossa perspectiva crítica procura mostrar, a partir dos casos estudados, as vantagens de um sistema de comando em relação a um sistema de controle. No Grupo 2 temos diversas tentativas de 39 incentivar o transporte ativo. O que aprendemos é que as medidas são relativamente simples e, em geral, requerem um orçamento não muito alto. No entanto, a comunicação e a negociação com a comunidade passam a ser um mecanismo chave para o sucesso da política que, sistematicamente, não conta com o apoio da população. Um resultado típico é a falta de apoio ex-ante seguida pelo apoio ex-post ainda que nem sempre se verifique essa rotação na opinião pública. Finalmente, temos um último grupo contando com apenas um instrumento o qual ainda não foi implementado de fato que adota uma terceira estratégia: levar as atividades para perto das pessoas. Justamente por isso, vale a pena destacar o terceiro grupo. Há três maneiras de tornar a mobilidade mais sustentável: cobrando do transporte motorizado individual o mal causado para a cidade; subsidiar os modos ativos através da priorização do investimento ou diretamente; ou reduzir a necessidade de deslocamentos longos que acabam por requerer o uso de meios motorizados. Grupo 1. Intervenções orientadas à gestão da demanda de viagens e redução do uso do transporte individual motorizado A distorção gerada pelo uso exagerado do transporte motorizado individual é um problema enfrentado por quase todas as cidades. Curiosamente, poucas procuram atuar da maneira mais lógica para evitar essa distorção. A maioria das cidades não limita a entrada de veículos e as que cobram por isso são ainda mais raras. Observamos, na prática, um subsídio ao uso desse modo visto que não há restrição e as ruas são pagas com impostos gerais cobrados de todos os cidadãos (não apenas daqueles que usam o modo individual privado para se deslocar). A possibilidade de estacionar nas vias de maneira gratuita, por exemplo, é mais a regra do que a exceção. Portanto, os casos selecionados dentro desse grupo representam a exceção e, por isso, merecem nossa atenção. É difícil entender do ponto de vista técnico porque as cidades não estão tomando medidas tão evidentes como as destacadas nesses estudos de caso. A resposta, provavelmente, está no que denominamos de “Economia Política” como discutiremos a seguir. A solução para o excesso de viagens utilizando o transporte individual motorizado em todos os casos de estudo do grupo 1 foi a imposição de restrição de circulação, através de algum tipo de taxa de circulação, seja ela autorizativa (para permitir circular na área com restrição) ou punitiva (penalizando circulação indevida na área de restrição), aplicadas por meio de rodízio (com taxa punitiva), pedágio urbano (com taxa autorizativa) ou ticket (caso da Zona Azul de São Paulo, onde o pagamento de taxa autoriza o uso da vaga de estacionamento rotativo). 40 Outra semelhança entre os casos do grupo 1 também está no modo de implementação, majoritariamente baseado em fiscalização, onde o custo de manutenção está mais diretamente relacionado ao monitoramento das vias, seja por câmeras, radares ou fiscais. No entanto, dentre todos os casos analisados, apenas na Zona Azul o setor privado tem participação direta no fornecimento do aplicativo para aquisição do ticket ou na venda dos mesmos em estabelecimentos físicos. Adicionalmente, a empresa concessionária da Zona Azul assume parte da responsabilidade de fiscalização do cumprimento da norma. Essa é, de fato, uma exceção encontrada para o estacionamento nas ruas em outros locais mas, que seja do nosso conhecimento, nunca adotada na operação de medidas de restrição ao uso do leito carroçável. A primeira lição a ser discutida são os dois meios de controle do uso das vias por modos motorizados individuais. A grande maioria das cidades simplesmente não realiza esse controle. Há poucas centenas de cidades no mundo limitando a entrada de veículos nas áreas de concentração de empregos e educação superior. Por outro lado, provavelmente não chega a uma dezena o número de cidades que cobram diretamente pela entrada nessas áreas de grande densidade de atividades. Assim, a Cidade de São Paulo a coloca entre as poucas cidades do mundo que têm algum controle sobre o uso do viário por modos insustentáveis. Entre os casos selecionados para esse estudo, apenas Santiago adotou medidas de limitação ao uso indiscriminado do carro antes de São Paulo (em 1986). Ainda que esse fato seja meritório, devemos refletir sobre a falta de atualização dessa regulação desde a sua implementação em 1997. Os outros casos estudados mostram que a regulação evoluiu ao longo dos anos o que não se observa no caso de São Paulo. O primeiro ponto a se destacar é que o rodízio não é gratuito nem mesmo para os próprios usuários do mesmo. Em primeiro lugar, parte das famílias opta por ter um veículo adicional. Essa saída é considerada pelos economistas como uma “perda de peso morto”. A famílias precisa pagar todos os custos de manutenção de um veículo extra e a medida perde efetividade para essas famílias. O veículo adicional gera apenas custo para a sociedade. Uma família que pudesse pagar no seu dia de rodízio para entrar no centro expandido, provavelmente economizaria se compararmos com os gastos relacionado à posse de um veículo e a cidade teria recursos para investir em transporte público e em modos ativos. As famílias que não adquiriram um veículo adicional mas terminavam pagando multas pelo uso da via em horário não permitido provavelmente estariam melhor com uma cobrança pelo congestionamento. Esse, provavelmente, foi o raciocínio de Cali ao implementar a opção de pagamento para os veículos que optassem por entrar na sua área central em horários e dias não permitidos. Essa é uma oportunidade muito interessante para São Paulo. Como já há o rodízio, adicionar a possibilidade de “furar” o rodízio através do pagamento de uma taxa, bem menor do que a 41 multa, não deve enfrentar nenhuma resistência. Afinal de contas, se está apenas adicionando uma possibilidade sem alterar o “status quo”. O problema é qu e essa alternativa não é sustentável pois, teoricamente, apenas aumenta o número de veículos em circulação pois uma parte dos veículos que não entravam na cidade no seu dia de rodízio pode passar a entrar. Esse fato é necessariamente verdadeiro. Ao não alterar o status quo, na melhor das hipóteses, continuaremos com o mesmo número de veículos entrando no centro expandido. Temos um ganho ambiental e de arrecadação com as famílias que tinham um veículo adicional e que, na grande maioria dos casos, devem migrar para o pagamento da taxa. No momento de implantação do Rodízio 14,3% dos entrevistados em uma pesquisa responderam que sua reação ao rodízio foi adquirir um segundo veículo. Não houve mais monitoramento, mas tudo indica que essa proporção deve ter aumentado então estima-se que esse ganho seja considerável. Por outro lado, uma série de veículos que alteravam seu horário de deslocamento ou utilizavam meios mais sustentáveis devem passar a utilizar o viário pagando por isso. Na prática, sem mexer no modelo de rodízio, o resultado deve ser a piora no congestionamento e nas emissões ainda que “autolimitada”. A limitação vem da chamada “Regra de Congestionamento das Vias”: o aumento de veículos deve levar a um aumento de congestionamento que deve desincentivar o uso do automóvel particular, sobretudo se for acompanhado de uma priorização do transporte público através de vias segregadas, por exemplo. De toda sorte, a maneira de implementar uma taxa por congestionamento como um avanço em relação ao rodízio precisaria, em algum momento, adicionar ao menos um dia de rodízio. Ou seja, teríamos 40% dos automóveis com restrição de circulação a cada dia útil ao invés dos atuais 20%. Essa é a mudança mais sensível a ser realizada e de difícil aceitação política. O responsável pela implementação do rodízio em São Paulo, Fabio Feldman, nunca mais foi eleito. Vale lembrar que a taxa por congestionamento é altamente aceita hoje em dia pelos londrinos e que Ken Livingstone foi reeleito em 2004 resistindo à campanha de Steven Norris que batizou a taxa de Kengestion Charge. Enfim, o que podemos afirmar em relação aos estudos é que permitir a circulação de carros no seu dia de rodízio mediante o pagamento de uma taxa por congestionamento tem toda condição de aceitabilidade. Vale a pena entrar em um caso no qual São Paulo é pioneiro: a cobrança de preço público pelo uso intensivo do viário para fins comerciais. Ainda que essa política inovadora do município de São Paulo não tenha entrado no estudo de casos, sabemos que um dos argumentos que questionam essa política é o fato de que a mesma não foi adotada para todos os veículos motorizados. Uma alternativa seria 1. Exigir o pagamento de todos os veículos em dia de rodízio; 2. Em dias fora do rodízio, não cobrar por duas viagens, mas cobrar a partir da terceira viagem; e 3. Estender o período do rodízio para o período integral (das 7 às 20h) ao 42 invés de apenas nos horários de pico. Aos aplicativos seria permitido seguir pagando como hoje em dia ou pagar por passagem nos radares como todos os outros veículos. O parágrafo anterior chama a atenção para alguns fatos que vale a pena nos aprofundarmos. Em primeiro lugar, São Paulo já tem hoje em dia um sistema abrangente de radares que permite que se fiscalize o rodízio de maneira automática. Esse mesmo esquema pode ser utilizado para a cobrança da taxa por congestionamento. A questão de se cobrar pela terceira viagem é fundamental para que se aplique a mesma regra aos aplicativos que a aplicada aos demais usuários. Essa seria uma mudança impopular em um primeiro momento, porém eventualmente com menor impacto visto que a maioria das pessoas realiza de fato apenas duas viagens por dia. Essa medida afetaria particularmente os pais que buscam seus filhos na escola de carro no horário do almoço. Em outras palavras, todos os usuários de veículos motorizados teriam direito a duas viagens entre 7 e 22h todos os dias exceto no seu dia de rodízio. A circulação estaria livre fora desses horários. O segundo ponto levantado se refere ao horário de funcionamento. Para funcionar a regra para os aplicativos e, com isso, diminuir o risco de judicialização da regulação corrente, o horário teria que ser ampliado como proposto acima. É importante destacar que, entre os casos estudados, São Paulo é o que apresenta a menor amplitude de horários. Em Cali a restrição se dá das 6 às 10h e das 16h às 20h, ou seja, se inicia uma hora antes do rodízio de São Paulo nos dois picos. Em todos os outros casos a restrição se dá durante todo o dia: em Santiago das 7:30 às 21h e em Londres e Milão das 7 às 22h. A limitação do período de restrição a 3 horas acaba gerando um efeito indesejável que é a postergação do horário de pico. Diversos motoristas acabam optando por sair de casa depois das 10h e retornar depois do trabalho após as 20h. Poucos motoristas estariam dispostos a retornar para casa depois das 22h sobretudo se fosse permitido voltar antes mediante o pagamento de uma taxa. O terceiro ponto se refere à tecnologia de cobrança. Sem dúvida, o fato de São Paulo já ter uma estrutura de fiscalização automática é extremamente útil e abre uma excelente oportunidade. No entanto, o ideal seria que a cobrança se desse por quilometro ao invés de uma cobrança única pela entrada no perímetro sob restrição. Esse é um defeito de todos os casos estudados. Que seja do nosso conhecimento, apenas a taxa por congestionamento de Singapura realiza a cobrança por quilometro. Vale notar que Singapura recentemente está alterando a forma de cobrança permitindo que o usuário utilize seu celular com a localização para fins de cobrança. A medida de Singapura, a taxa por congestionamento mais antiga que existe, não foi objeto de análise, mas é conhecido que para conseguir a cobrança por quilometro foi necessária a implantação de um sistema tecnológico bastante complexo com altos custos de manutenção e, por isso, o interesse de migrar para um sistema aproveitando- se do fato de que a cada indivíduo hoje em dia carrega um GPS no bolso (o celular). Assim, 43 uma alternativa seria realizar a cobrança utilizando os radares, porém abrir a possibilidade de cobrança por quilometro para os indivíduos que estivessem dispostos a abrir sua localização (respeitando, evidentemente, a LGPD). Como notamos nos estudos de caso, em geral a regulação passou por modificações até alcançar seu nível atual. Podem ocorrer ainda outras mudanças no futuro, evidentemente, mas o que chama a atenção é o fato de que São Paulo não alterou sua legislação ao longo de muito tempo. A primeira alteração pode ser simplesmente permitir que os veículos paguem uma taxa no seu dia de rodízio ao invés da proibição estrita. Em seguida pode-se alterar o horário de funcionamento do rodízio compatível com outros casos no mundo. Talvez inicialmente ampliar uma hora em cada horário para se chegar em todo o período de utilização mais intensa em um determinado prazo (e dividindo o custo político dessa medida com outras administrações). O terceiro passo e talvez um dos mais complicados, seria permitir apenas um certo número de viagens gratuitas fora do dia de rodízio. O ideal seria permitir duas viagens, mas pode ser mais factível politicamente permitir quatro viagens. Esse passo permitiria generalizar a regulação para todos os veículos: os aplicativos poderiam optar por pagar da forma como estão pagando hoje em dia ou por passagem pelos radares. Se for cobrada uma tarifa de ônibus cada vez que o veículo passar pelo radar após as viagens “de graça” é muito provável que os motoristas de aplicativos optem por pagar por quilometro assim como a maioria dos indivíduos se deslocando com veículos motorizados individuais nos dias de rodízio. Um efeito adicional seria a possibilidade de conhecer o padrão de deslocamento desses indivíduos que, somado aos dados da bilhetagem, permitiriam um planejamento fino da mobilidade na cidade. A ampliação do horário, mesmo com 4 viagens gratuitas, provavelmente daria proteção suficiente à cobrança de preço público dos aplicativos, mas para efetivamente reduzir o número de veículos em circulação seria necessário dar o quarto passo com a ampliação do número de dias do rodízio. Em relação ao destino da importância arrecadada com o pedágio urbano, multas (no caso do rodízio) e ticket da Zona Azul, nota-se que seus recursos obedecem a legislação que indica quais itens são financiáveis com seu recurso. No Brasil, o artigo 320 do Código de Trânsito Brasileiro determina que a receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito será aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito, sendo que 5% da arrecadação será obrigatoriamente destinada a fundo de âmbito nacional destinado à segurança e educação de trânsito. Ou seja, essa parte da receita gerada com a arrecadação de multas não pode ser investida no transporte público ou na criação de infraestrutura de modos ativos, apenas na infraestrutura e necessidades dos automóveis. Já a Zona Azul de São Paulo, desde o início da nova outorga, prevê que a receita dos tickets será destinada para o Fundo de Desenvolvimento Social, que 44 permite aplicação de recursos em saúde, educação, habitação, transporte, assistência social e segurança, o que significa que não há vinculação da receita com despesas de mobilidade. Na prática, a concessão do serviço implicou em uma redução das receitas vinculadas ao transporte. Esse é outro aspecto no qual São Paulo se distancia dos outros estudos de caso apresentados nesse relatório. Nos outros casos, com exceção de Santiago onde não há informação sobre arrecadação, os recursos são sistematicamente utilizados no transporte público e nos modos ativos. Certamente parte da redução na proporção dos automóveis em Londres de 48% em 2000 para 40% em 2010 com aumento no uso do transporte público de 27% para 33% no mesmo período esteve relacionada com a cobrança por congestionamento, mas também pela melhoria no serviço de ônibus da cidade onde se investiu a arrecadação gerada pela taxa por congestionamento desde 2003 na sua implementação. A taxa por congestionamento, na cidade de São Paulo, poderia ser uma receita alternativa para o financiamento do transporte público e infraestrutura dos modos ativos, visto que não há destino definido para esse tipo de cobrança. Alterar o destino das demais receitas exige esforços institucionais mais profundos, porém também seria o caso de se repensar o destino das receitas à luz do que aprendemos de outras cidades. Além disso, considerando uma perspectiva mais ampla de uma estratégia de gestão da demanda, a Zona Azul poderia ser concebida e operada como parte de uma política de estacionamento integral da cidade, que permitisse a criação de mecanismos regulatórios e econômicos voltados à redução do uso do automóvel pela articulação da precificação e da quantidade e distribuição da oferta de vagas de acesso público fora da via e na via, bem como de acesso privado em edifícios comerciais e residenciais. A cobrança por estacionamento em vias públicas é bastante antiga no mundo, mas São Paulo também está na vanguarda dessa solução. Ao apostar em um sistema de talões, ao invés do sistema de parquímetros, a migração para um sistema digital foi trivial sem contar a economia no custo de manutenção desses equipamentos. No entanto, não foi dado o passo seguinte: utilizar o estacionamento na via pública como um instrumento de GDV. Vale dizer que quase nenhuma cidade deu esse passo. Provavelmente San Francisco, EUA é uma das poucas exceções com um sistema de preço dinâmico pelo estacionamento na via. Londres também se destaca ao cobrar as empresas que oferecem estacionamento privado. Nova Iorque, após a derrubada da taxa por congestionamento no referendo proposto pelo então prefeito Michael Bloomberg, passou a cobrar uma taxa extra sobre os estacionamentos. Esse seria um passo chave para transformação de vagas hoje destinadas ao estacionamento para os modos ativos. Sem preço dinâmico provavelmente a eliminação de vagas em áreas muito demandadas mesmo que acompanhada pela criação de 45 vagas em locais hoje em dia pouco demandados provavelmente levaria a um desequilíbrio econômico na concessão do sistema. Porém, com preço dinâmico, as vagas que sobrassem nas áreas mais demandadas deveriam compensar a perda de receita com a redução de vagas nessas áreas; e criação de vagas em locais hoje em dia menos atrativos poderia gerar receita com preços menores em função da demanda limitada. O preço dinâmico é uma ferramenta poderosa de GDV se gerenciado corretamente que também está sendo desperdiçada pelo município nesse momento e pode perfeitamente ser implementado dentro do marco regulatório atual que inclui a concessão do serviço. Os rodízios e taxas de congestionamento analisados para gestão da demanda de viagens chegaram a ter uma redução aproximada de 30% da circulação de veículos no início da sua implementação. No entanto, essa redução não se manteve no caso das soluções de controle. Não é possível manter a redução nos congestionamentos justamente pelo que denominamos “peso morto”: a compra de outro carro para vencer o sistema de rodízio, tornando as medidas menos eficazes com o passar do tempo. Um outro fator observado em todos os locais são as exceções para carros elétricos, híbridos, menos poluentes (exceções justificadas) bem como outras exceções menos transparentes. Este efeito reforça a necessidade de investimentos complementares em transporte coletivo, infraestrutura cicloviária, entre outros, para atingir efetivamente o objetivo de redução de viagens de transporte individual motorizado. Reforça também a superioridade da solução de comando em detrimento da solução de controle. Em contrapartida, os resultados financeiros das taxas costumam cobrir em 100% seu custo de operação e ainda registrar um superávit de pelo menos 50% de seu custo de implementação, o que torna essas medidas uma boa estratégia de financiamento de outras políticas de mobilidade, como foi observado em Cali e em Londres. Para isso, é necessária a organização do arranjo regulatório, destinando as receitas para um fundo de transporte com alocação de uma alta porcentagem em transporte público e modos ativos. Como discutido anteriormente, devida à infraestrutura já instalada de radares em São Paulo, o custo de fiscalização seria extremamente baixo. Outro ponto que nunca foi modificado no rodízio de São Paulo é o seu perímetro. Há estudos na CET indicando que a área deveria ser ampliada se a medida levar em conta os congestionamentos atuais. No entanto, comparando com os casos estudados, a cobertura não é pequena. A área coberta de cerca de 190km2 é bem maior que a área da taxa por congestionamento de Londres que tem apenas 22km2. É verdade que a área coberta por Santiago é de 280km2 em uma cidade menor: a restrição em Santiago cobre 43% do território e em São Paulo não chega a 20% da área urbana e cerca de 12% da sua área total. Em Cali a restrição veicular cobre a cidade toda. Algumas qualificações são importantes, no entanto. Quando Londres tentou a expansão do perímetro (Western Extension) em 2004 acabou sendo 46 obrigado a recuar não obstante a aceitação da medida no seu perímetro original. A saída foi encontrada bem recentemente com a criação das zonas de emissão “ultra-baixas” (ULEZ) em 2021. A ULEZ cobre uma área de cerca de 360km2, porém traz na sua origem uma exceção para os veículos com baixa taxa de emissões como, por exemplo, os veículos elétricos. Nesse sentido, essa zona lembra mais a Área C de Milão. Para os demais veículos a taxa é ligeiramente mais baixa do que na zona de taxa por congestionamento (12,50 libras ao invés de 15 libras). Esse fato, portanto, indica que um aumento na área de cobertura do rodízio precisa ser pensado com bastante cuidado inclusive na forma de comunicação da medida. Em princípio as outras medidas discutidas acima seriam mais relevantes do que a ampliação da área. Para conquistar o apoio popular e evitar uma reação contrária da sociedade, os casos do grupo 1 foram sempre acompanhados de campanhas de comunicação no período de implantação e reformulação, como apresentado no Quadro 4.1. As campanhas podem ser informativas, como a realizada em Londres em 2003, ou de sensibilização e convencimento, como a realizada em São Paulo, em 1997, antes da implementação do rodízio. Se a prefeitura optar por realizar as mudanças propostas nesse documento, em linha com o que está ocorrendo internacionalmente, deveria colocar no orçamento uma ampla campanha para conseguir apoio da população. Devido à facilidade de implementação dos instrumentos do grupo 1, seus resultados positivos no meio ambiente e na saúde, seu retorno financeiro satisfatório e sua baixa exigência administrativa (não exige integração de muitos atores diferentes, com diversas frentes de trabalho e de governança), eles são instrumentos para os “primeiros” passos rumo a provisão de ruas compartilhadas. O longo período desde a implantação dos instrumentos deste grupo reforça essa inferência. As primeiras medidas já têm mais de 3 décadas enquanto as medidas do Grupo 2 discutidas a seguir têm no máximo 12 anos. Passamos agora a discutir justamente essa nova geração de políticas de incentivo aos modos ativos. Grupo 2. Intervenções orientadas a ruas completas e priorização dos modos ativos De São Paulo a Nova York e de Bogotá a Barcelona, os sete casos deste grupo possuem estratégias de transformação das ruas em lugares de convivência, com melhorias na infraestrutura e priorização dos modos ativos. Essas medidas são adotadas a partir de um redesenho da rua de modo a incentivar a circulação de pedestres e ciclistas, reiterando a ideia de que a gestão da demanda de viagens é o primeiro passo para se redistribuir de forma mais equilibrada os modos de deslocamento. Em Pontevedra, a primeira ação da política que se tornou internacionalmente conhecida, foi a proibição do tráfego de veículos no centro da 47 cidade em 1999 - primeiro ano de mandato. Essa medida de baixo custo deu o pontapé inicial para uma série de transformações da infraestrutura urbana que resultaram no Metrominuto: uma estratégia de comunicação com nudges para incentivar a população a caminhar. Essas medidas são bastante recentes se considerarmos que a mais antiga tem apenas 12 anos. São Paulo está mais uma vez nesse gripo de cidade pioneiras com a adoção das áreas 40 há 8 anos (em 2013). As Superillas, em Barcelona propostas em 2016 mas até o momento com implementação bastante limitada, também partem de intervenções pontuais, com materiais leves, para impedir o trânsito de veículos de passagem e, assim, reconquistar espaços de estar e lazer. A fase 1 das Áreas de Velocidade Reduzida, em São Paulo, parte de um princípio semelhante: com sinalização vertical e horizontal, se estabelece um limite mais baixo de velocidade máxima. Esses três casos mostram que a mudança de sinalização em um primeiro momento é eficaz para se atingir rapidamente resultados. No entanto, o caso bem-sucedido de Pontevedra mostra como é necessário ampliar sucessivamente a política para que o impacto seja continuamente incrementado para se atingir o objetivo final. Em São Paulo, a dificuldade de se avançar para a fase 2 e implementar obras viárias necessárias para as medidas de moderação de tráfego planejadas pela CET, revela um problema de fragmentação da governança do espaço público. Em São Paulo, há uma série de atores responsáveis pelas vias urbanas, que variam de acordo com o espaço em questão (calçada, ciclovia, pista, etc) e em relação à atividade (operação, projeto, melhoria, manutenção, etc). Em Nova York, a dificuldade em se chegar a uma visão comum sobre os parâmetros de desenho do espaço urbano foi superada com a elaboração e constante atualização do Manual de Desenho Urbano. Desenvolvido em 2009, a principal força está no engajamento de diversas instâncias de projeto, execução e operação das vias urbanas. A institucionalização do Manual por meio de sua inclusão na lei orgânica do município faz com que ele seja frequentemente aperfeiçoado para corresponder às melhores práticas de desenho urbano de acordo com seus princípios de priorização dos modos sustentáveis de deslocamento. São Paulo também possui um Manual de Desenho Urbano e Obras Viárias que se apresenta como uma grande oportunidade para se alinhar a visão acerca do espaço público com o objetivo de priorizar o transporte ativo. No entanto, em São Paulo, o manual é simplesmente uma publicação sem o alcance de coordenação e padronização observado em Nova Iorque. O fato de existir já um manual, no entanto, indica uma oportunidade que não deve ser ignorada. É importante rever o manual visto que o mesmo foi baseado no modelo nova-iorquino e, eventualmente, pode não estar de acordo com os padrões locais. Para que esse manual redundasse efetivamente em algo do porte do que se observou em Nova Iorque, seria 48 necessário validar o mesmo junto aos principais atores e, idealmente, realizar alguma forma de institucionalização como, por exemplo, incluir o mesmo na revisão do Plano Diretor em curso. Em Londres, o Plano de Ação de Caminhabilidade também é um instrumento de planejamento e alinhamento de visões. Nele, há uma série de metas a serem alcançadas, com objetivos explícitos de se priorizar o deslocamento à pé devido ao impacto positivo na saúde. O Plano estabelece o investimento de £139 milhões ao longo dos cinco anos, com vistas a aumentar a participação do modo a pé em cerca de 20% (de 6.4 milhões de viagens/dia em 2018 para 7.6 milhões/dia em 2024). Algumas lições em relação a Londres são relevantes. Em primeiro lugar, a política urbana de Londres tem uma meta firme de aumentar a participação dos modos sustentáveis (transporte público e os modais ativos). A primeira medida já discutida foi a taxa por congestionamento com um sucesso considerável reduzindo a participação do carro em 8% e aumentando a participação do transporte público em 5% entre 2000 e 2010. Essa performance se manteve mas reduziu de ritmo substantivamente na década seguinte. Entre 2010 e 2013 a participação do transporte público aumentou 3% enquanto a participação do carro diminuiu outros 3% porém essa proporção permaneceu essencialmente constante até 2019. Chama a atenção o fato de que a participação do modal a pé não ter tido nenhuma alteração relevante desde 2000 quando se inicia as políticas de transporte de Londres em direção a um transporte mais sustentável. O uso da bicicleta, por outro lado, dobrou. Porém, além dessa proporção estar estagnada desde 2016, sua participação continua estável em 2,4%. Em outras palavras, as medidas adotadas no início dos anos 2000 já demonstram saturação e a bicicleta não parece ter escala para mudar a distribuição das viagens de maneira significativa. A grande aposta é a caminhada que hoje representa 25% das viagens e se pretende chegar a 30%. Essa nova geração de políticas de transporte é, em certa medida, um reconhecimento de que as medidas anteriores, apesar de seu sucesso em relação aos objetivos iniciais, já apresentam exaustão exigindo a criação de uma nova agenda de políticas públicas. Para superar a fragmentação da governança sobre as vias, Bogotá possui uma política de espaço público que se destaca pela alta capacidade de manutenção e melhoria. Essa política é incremental e, desde 2005, vem consolidando os componentes regulatório, institucional, urbanístico, de financiamento, de monitoramento e social. A fragmentação ainda observada pretende ser superada por meio da criação de uma política distrital de espaço público e, assim, melhorar a articulação entre atores e recursos. O planejamento participativo é uma estratégia de engajamento e comunicação muito presente dentre os casos deste grupo, especialmente em Barcelona, Fortaleza e São Paulo, por meio 49 de oficinas participativas. Nessas três cidades, a Prefeitura utilizou-se de estratégias de urbanismo tático para comunicar, testar e difundir as intervenções. Nesses lugares, a própria intervenção serviu de abrigo para os debates, consultas e audiências, aproximando as decisões políticas das pessoas diretamente impactadas. Grupo 3. Intervenções orientadas à redução de distâncias de deslocamento Dentre os casos estudados, apenas Paris tem como principal componente a redução das distâncias das viagens. A cidade já possui uma densidade alta e uso misto do solo. Portanto, a cidade não está muito longe de alcançar a meta de reduzir distâncias. Isso porque a cidade teve o seu desenvolvimento urbano orientado ao transporte, de forma a garantir a diversidade tão almejada por outras cidades. Nesse sentido, o programa “Paris 15 minutos” é principalmente uma campanha que tem como objetivo criar uma visão compartilhada de cidade sustentável. Em um primeiro momento, investiu-se na criação de infraestrutura ciclável com o objetivo de tornar a cidade 100% ciclável. Agora, a Prefeitura prepara-se para adotar medidas menos populares de remoção de vagas de estacionamento e de solução para o transporte de cargas, hoje tão poluente. Como pode-se observar, este é um caso que parte de um planejamento urbano que atende aos princípios de sustentabilidade na perspectiva do transporte (61% das viagens já são realizadas a pé). Para incentivar ainda o uso de bicicleta, a Prefeitura vem ampliando sucessivamente a sua rede cicloviária, alinhado ao princípio de ruas completas. E agora que essas medidas já estão populares, o setor público vai implementar instrumentos de gestão de demanda de viagens. Quadro 4.2 Estratégias de comunicação dos casos estudados Os casos analisados apresentaram diversas estratégias que comunicam e, em alguns casos, abrem espaços de diálogo sobre as ações orientadas a promover o transporte sustentável. No relatório, para cada um dos casos estudados foram listadas (e algumas vezes ilustradas) estratégias de comunicação identificadas nas fases de lançamento e implementação. Para fins de análise, as estratégias foram categorizadas em cinco grandes grupos: campanhas, imprensa, eventos, processos participativos e acesso à informação. O quadro a seguir apresenta o panorama e, na sequência, serão apresentadas observações analíticas. 50 Figura 4.1 Estratégias de comunicação adotadas no período de lançamento e implementação da política. Fonte: Elaboração própria. Obs. As informações desse quadro refletem as informações disponíveis na internet. Portanto, pode ser que, por exemplo, a Prefeitura de São Paulo tenha realizado campanhas acerca da Zona Azul em 1975, ano de implementação da medida. Contudo, não encontramos registros, tampouco menções, a algumas estratégias de comunicação. As estratégias de comunicação observadas nos casos ilustram como é possível recorrer a diferentes ações dependendo da natureza e objetivos da política, do nível de maturidade do debate público sobre o tema, do conhecimento prévio sobre disposição ou oposição à medida pela população e do grau de engajamento prévio da população com as medidas propostas. As campanhas publicitárias, geralmente feitas em tv, rádio, outdoors e faixas, podem ter dois focos. Um deles é o informativo, que visa esclarecer as mudanças, o funcionamento da medida e questões práticas que impactam o dia a dia da população, além de colocar o tema na agenda pública. O outro foco é o de sensibilização e engajamento (convencimento), com frases de efeito para explicitar a importância da mudança de comportamento da população e seu potencial de impacto. Esse tipo de campanha também traz uma chamada para 51 a ação, convocando a audiência para fazer alguma coisa. Exemplos são vistos nos casos do Rodízio em São Paulo e da Congestion Charge em Londres: “Você colabora algumas horas e o trânsito melhora todos os dias” e “Se você pudesse ver o ar de Londres, você também iria querer limpá-lo”, respectivamente. Campanhas publicitárias de massa são especialmente relevantes antes da implementação de medidas impopulares como nos casos de políticas que implementam instrumentos de gestão de demanda (grupo 1). É comum realizar pesquisas de opinião para orientar a estratégia de campanha, como foi feito em São Paulo (Rodízio) e em Londres (Congestion Charge). Isso porque campanhas publicitárias em meios de comunicação de massa em geral são muito caras. Então é importante garantir que as peças usadas sejam o mais assertivas possível, considerando que é possível dizer a mesma coisa de várias formas, mas nem todas as formas vão gerar o impacto desejado sobre a audiência. Essa checagem de efetividade é feita via pesquisa para ouvir a opinião de uma amostra do público-alvo sobre os materiais da campanha, para garantir que a mensagem é clara e atende aos objetivos de comunicação. Processos participativos, além de colher contribuições da sociedade, foram utilizados como uma primeira etapa na estratégia de comunicação e engajamento da população. Entender as percepções e conceitos do público que será impactado pelas medidas e pelas estratégias de comunicação de massa é fundamental para adequar a linguagem e trazer argumentos a fim de conquistar apoio popular, além de otimizar a produção de materiais com mensagens assertivas. Em Londres (no caso da Taxa de Congestionamento), em Paris (especificamente para a remoção de vagas de estacionamento no âmbito do programa Paris 15 Minutos) e em Milão foram realizadas consultas públicas. Nesses três casos, a população estava muito dividida perante a medida e o custo político de assumir a decisão era alto. Dessa forma, a consulta pública foi uma forma do governante dividir a decisão com os cidadãos ou, ainda, superar barreiras políticas/de oposição por meio da voz da população. Um bom exemplo é o caso de Milão em que a associação Milano si Mueve liderou uma petição que levou a um referendo revelando que 79% da população era favorável ao aumento das restrições de veículos no centro da cidade. Já as oficinas participativas, debates e audiências públicas, como as realizadas em São Paulo (no caso das áreas de velocidade reduzida), Fortaleza e Barcelona, aparecem em contextos menos hostis politicamente e de alcance 52 mais localizado. Por isso, tais atividades foram realizadas nos próprios locais onde ocorreram as transformações, aproximando-se das pessoas diretamente impactadas. No caso do programa Metrominuto, em Pontevedra, observa-se ações orientadas a gerar mudança comportamental para estimular que mais pessoas andem a pé. Os nudges, “pequenos empurrões” da ciência comportamental, incentivam escolhas desejáveis por meio da comunicação efetiva com a população, sem restringir a liberdade de escolha dos indivíduos . As ações de nudge em geral são baratas, simples e muitas vezes estão presentes no próprio ambiente/contexto de tomada de decisão. Por sua vez, as campanhas de comunicação de massa para mudança comportamental são, em geral, mais caras, mais complexas e fora do contexto da tomada de decisão. A inovação das ações de nudge está em identificar as barreiras cognitivas e superá-las, estimulando condutas benéficas para o indivíduo e para a comunidade. O programa de Metrominuto não implicou mudanças operacionais e focou em superar barreiras de informação (referentes a percursos possíveis, tempo estimado, ganhos de saúde e ambientais, entre outros) que dificultavam aos cidadãos visualizarem o modal a pé como uma opção real e adequada para seus deslocamentos, sob a mensagem “A pé vives mais”. Outra estratégia fundamental para comunicar medidas que afetam, ou tem potencial de afetar, a população é o engajamento da imprensa. Os veículos de comunicação têm o poder de levar informação para uma grande quantidade de pessoas, embasados em informação e respaldados por sua credibilidade. O relacionamento com jornalistas deve ser feito de maneira estratégica e cuidadosa, uma vez que a imprensa pode auxiliar no engajamento da população ou dividir percepções. Para evitar ruídos na comunicação, é possível realizar workshops com jornalistas para informá-los sobre as políticas de mobilidade antes de anunciá-los ao público. Outros dois mecanismos mais comumente adotados são o anúncio da medida em coletivas de imprensa e o uso do chefe do executivo como porta-voz, demonstrando a relevância de tal política na agenda governamental. Um caso recente e emblemático é o da Prefeita Anne Hidalgo, que aproveitou os debates do período eleitoral para pautar a mídia e envolver a população em torno do programa Paris 15 Minutos. Eventos como intervenções de urbanismo tático, realizadas em Barcelona, São Paulo e Fortaleza, também conquistam engajamento. Por urbanismo tático se 53 entendem ações de transformações temporárias das ruas com materiais leves (tinta, floreiras, balizadores etc.) que facilitam o diálogo com a comunidade do entorno e são excelentes formas de comunicar intervenções definitivas, pois podem ser facilmente visualizadas pela população. As ações de rua e intervenções urbanas são excelentes recursos para atrair atenção da imprensa e dar mais visibilidade para o tema de forma orgânica (sem pagar por espaço de mídia). Estratégias mais personalizadas de comunicação também podem ser utilizadas, dependendo da realidade da cidade e como complemento para as ações de comunicação de massa. Alguns casos utilizaram como recurso uma abordagem direta e individualizada com os cidadãos, como em Londres, no caso da Taxa de Congestionamento, onde foram enviadas correspondências aos motoristas, ou em Milão, onde foram enviadas cartas às famílias com informações sobre os danos que a poluição causa à saúde. O acesso a informações confiáveis e atualizadas em canais oficiais, como sites das prefeituras, é uma estratégia de comunicação fundamental. Todos os casos analisados disponibilizam informações nos sites governamentais. A população precisa saber onde encontrar informações corretas e atualizadas e como proceder em caso de dúvidas. No caso de Londres, foi criada uma linha telefônica para a população entrar em contato e tirar suas dúvidas. Nem sempre as ações visam alcançar a população como um todo. Também é muito importante pensar em estratégias de comunicação que mobilizem públicos específicos, como no caso do Manual de Desenho de Ruas de Nova York, onde foram realizados eventos (debates e palestras) que visavam engajar atores chave de projetos de espaços públicos, tais como escritórios de arquitetura, empresas de construção e departamentos de projeto internos à própria prefeitura. Além disso, engajar formadores de opinião, como jornalistas, acadêmicos, especialistas no tema e influenciadores que conversam com o público-alvo, podem ajudar a alcançar a audiência por meio do endosso da mensagem por pessoas nas quais o público confia. A definição da melhor estratégia a ser adotada vai depender da natureza e objetivo da medida, do público-alvo, das mensagens a serem comunicadas, dos recursos disponíveis, do mapa de atores e posições políticas favoráveis e contrárias, e do espaço e condições no debate público do tema a motivação que impulsiona a medida (como pode ser a saúde pública, objetivos ambientais, 54 segurança viária, e outros). Uma análise cuidadosa do contexto é fundamental para desenhar uma estratégia de comunicação adequada, porque o que funciona em uma localidade, eventualmente pode não ser factível em outra. Nesse sentido, ter um repertório de possibilidades ajuda a encontrar o melhor caminho para a promoção, engajamento e convencimento num determinado contexto. 55 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este relatório reuniu políticas de transporte sustentável com o objetivo de inspirar a cidade de São Paulo em suas políticas de transporte sustentável, a partir de uma abordagem que associa as estratégias de gestão de demanda de viagens e ruas completas. O escopo de medidas que podem ser levadas a cabo como dessa abordagem é bastante amplo e abarca diversas soluções. As sinergias e complementaridades potenciais pela combinação de migração modal com intervenções de reconfiguração da infraestrutura orientadas às pessoas, aos espaços públicos, à segurança e à habitabilidade da cidade, abre um leque diverso e abrangente de possibilidades de atuação para o poder público. Várias das ações possuem algum grau de interdependência com outras para alcançar o verdadeiro potencial que oferecem, o que torna mais crítico processos de planejamento, implementação e gestão integrais. Por esse motivo, as medidas avaliadas e desenvolvidas neste estudo estão mais concentradas em intervenções na rede viária para priorizar a mobilidade ativa e desincentivar o uso do TIM. Para isso, precisam ser entendidas não como ações isoladas, mas como parte de uma estratégia mais ampla e articulada. Para alcançar tais objetivos, os gestores públicos podem utilizar uma série de instrumentos, como: • Tributação: taxas de congestionamento, taxas por contaminação, taxas por estacionamento nas ruas, etc. • Desenho urbano: medidas de moderação de tráfego, ampliação das calçadas, implantação de calçadões, ciclovias, faixas exclusivas para ônibus, etc. • Planejamento urbano: uso misto do solo (residencial e comercial), adensamento ao longo dos eixos de transporte, etc. • Nudges: campanhas publicitárias, cartas com informações enviadas diretamente aos cidadãos, descontos por mudanças de comportamento, etc. • Tecnologia: aplicativos de ônibus, aplicativos com melhores rotas para bicicleta, plataformas de integração modal, etc. Os casos analisados na seção anterior mostram como, indiretamente, essas experiências são resultado de capacidades estatais fundamentais para a implementação de estratégias verdadeiramente integrais e intersetoriais, como: • Fiscalização: capacidade de fazer cumprir o previsto na política pública, como, por exemplo, nos casos de rodízio, pedágio urbano, zona azul; • Monitoramento: capacidade de acompanhar o progresso da política pública, permitindo avaliar sua eficácia como, por exemplo, o uso do GPS dos ônibus para acompanhar a frequência dos mesmos; 56 • Governança: capacidade de gerenciar diferentes equipes (inclusive de outros órgãos e outras organizações) para a prossecução da política pública; • Comunicação: capacidade de informar e/ou convencer o público-alvo e stakeholders sobre a validade da política pública; • Participação social: capacidade de engajar e envolver o público-alvo da política pública na sua formulação, implementação e avaliação; e • Financiamento: capacidade de angariar fundos para investir na política pública, sejam eles públicos ou privados. 57 REFERÊNCIAS Albuquerque, I., Alencar, A., Angelo, C., Azevedo, T. 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